Em Análises e Reflexões, Destaques

O Surgimento da Tragédia Grega

É uma tarefa ingrata qualquer tentativa de hierarquizarem-se as invenções do espírito grego. Afinal, um povo que criou a filosofia, as bases para a análise científica da natureza, o raciocínio abstrato, a matemática e o cálculo, o conhecimento aguçado do comportamento psíquico do homem, qual destas contribuições terá sido a mais importante? Mas se identificarmos em toda a cultura helênica qual criação foi não necessariamente a mais decisiva, mas, sim, a mais ousada, tal qual Bonnard, não teremos dúvida de que tenha sido a Tragédia Grega.

Desde seu nascimento, que data do princípio do século V a.C. até o seu declínio, nos anos 20 do século IV a.C., a Tragédia se desenvolveu dentro de condições históricas importantes de serem compreendidas para o entendimento desta “nova arte”. A tragédia dita primitiva – “o diritambo” trazia o mundo dos deuses até o mundo dos homens, tornando o divino mais humano. A Tragédia Grega ampliará isto, primeiramente exigindo que os deuses sejam justos e imponham a justiça – a dique – ao mundo, e, em segundo lugar, que a partir do exemplo divino estabeleça-se uma ordenação na comunidade dos homens.

Historicamente a Tragédia surge no declínio dos aristocratas, durante a tirania de Pisístrato, que foi levado ao poder à força, pelos camponeses mais pobres. Promoveu reformas sociais importantes, dentre elas uma melhor distribuição de terras e instituiu as festas Dionísicas, como concurso de produções artísticas para o deleite dos cidadãos. Pisístrato é uma ponte de passagem para Péricles e a Democracia Grega, assim como do diritambo à Tragédia.

O ditirambo constitui um canto religioso dionisíaco, entoado por cantores que, em coro, utilizavam personas – máscaras de animais. Já continha elementos dramáticos e transmitiam à plateia participante, um acontecimento mítico. De conformidade com Heródoto, foi Arion de Corinto quem introduziu o elemento satírico, complemento necessário ao diritambo, ou seja um recital de versos, entremeado aos elementos corais. Os “sátiros”, utilizando suas máscaras características, permitiram uma nova dinâmica no canto dionísico, prenunciando o surgimento dos atores e da própria tragédia.

Quando o deus Dionísio surge na Grécia, com toda a sua sintonia e integração com a natureza, a ele se unem todos os sátiros que com seu poderoso falo serão companheiros para todo o sempre.

Aristóteles afirmou que “o historiador narra o que aconteceu e o poeta o que poderia ter acontecido”. Ao mesmo tempo ele afirma ser a poesia “mais filosófica que a história”, dado que esta última tende ao específico e a poesia, ao “universal”. Os mitos formavam o conteúdo dessa poesia, assumindo um valor de realidade. Logo, a poesia épica ao narrar o mito constrói dois patamares: um que é o divino e o outro, o humano, de tal modo que o desenrolar dos acontecimentos na esfera do divino determinará o desenrolar dos acontecimentos terrenos.

A máscara da Tragédia, deixa de ser aquela máscara figurativa de demônios ou animais, mas surge como um elemento cênico importante, elemento esteticamente definido. Representa um sujeito “psicológico”, integrando a personagem trágica numa categoria social e religiosa bem definida: a dos Heróis.

Em contraponto com os atores estará o coro trágico, um ser anônimo e coletivo, cujo papel, de conformidade com Vernant, consiste em “exprimir seus temores, suas esperanças e julgamentos, os sentimentos dos expectadores que compõem a comunidade cívica”.

Desta forma, na Tragédia, a narrativa é realizada no presente e todo lirismo do século V a.C. tende a dar valor à realidade terrena; o presente é apenas “iluminado” pelos mitos, pelo passado e pelos lugares em que os “fatos” teriam ocorrido. A construção dos modelos, os Heróis, constitui os paradigmas éticos, que é o reconhecimento de comportamentos referenciados pela melhor tradição cívica.

Para o espectador grego, o que se representa é verdade? Não. Então, é pura mentira? Também não, pois o critério da verdade e da mentira que se poderia utilizar na poesia épica perdera toda a serventia. A arte imita e interpreta a realidade, representando-a somente, tornando-se com isto uma nova e particular realidade.

Precisamente na Tragédia é onde o mito perde toda e qualquer conexão com situações determinadas, concretas. Já não serve para representação de fatos da vida humana fixados no tempo e no lugar, como vitórias, conquistas, cultos religiosos, mas para a representação de fatos universais.

É deste modo que o interesse da Tragédia se desloca para a Filosofia e já estará próximo o momento em que a problemática da condição humana de que trata a Tragédia se transformará em um problema do conhecimento, do logos. Este será o exato momento em que a realidade passa a ser concebida em sentido totalmente abstrato e ocorre o surgimento de Sócrates tentando equacionar a condição humana através do bem. Eurípides, o último dos grandes trágicos, ainda está longe disto, pois é poeta e não filósofo, apesar de influenciado pelos sofistas e por Sócrates. Talvez por isso mesmo ainda vê a realidade através de figuras vivas, não através de conceitos. Entretanto, é analisando suas poesias que entenderemos Aristóteles quando diz que “a poesia é mais filosofia que história”.

O Momento histórico da Tragédia

Louis Gernet demonstrou que, buscando suas referências num passado distante, no momento da cosmogonia, das epopeias e dos feitos Heróicos, a verdadeira matéria que constitui a Tragédia é o pensamento social em efervescência nas cidades gregas, especialmente o pensamento jurídico em pleno trabalho de construção.

Todo um vocabulário que é técnico e que perfaz os dramas, assim como a condução de diversos Heróis à presença de Tribunais, recentemente introduzidos, possuíam a novidade dos valores que regulavam sua fundamentação.

No dizer de Vernant: “os poetas trágicos utilizam este vocabulário deliberadamente com as incertezas, com suas flutuações, com sua falta de acabamento, traduzindo igualmente seu conflito com uma tradição religiosa, com uma reflexão moral de que o direito já se distinguira, mas cujos domínios não estão claramente delimitados.” “O direito não é uma construção lógica: constituiu-se historicamente a partir de procedimentos “pré-jurídicos” de que se libertou e aos quais se opõe, embora em parte permaneça solidário com eles”.

Os gregos não têm a ideia de um direito absoluto, fundado sobre princípios, organizado num sistema coerente. Para eles há como que graus de direito. Num polo o direito apoia-se na autoridade de fato; no outro, coloca em jogo potências sagradas, assim como problemas éticos e morais que dizem respeito ao homem.

A Tragédia questiona essa realidade que é nova, coincidente com a formação dos cidadãos-livres, o sentido da cidade como Pátria, a responsabilidade coletiva vivenciada na democracia. Por isso, a tragédia é questionadora da realidade vivida e de seus valores, ao invés de, simplesmente ser um “espelho” do real que assume os palcos. Ela foi mais do que tudo uma instituição social, ao lado dos órgãos públicos políticos e de justiça. É a própria cidade que se faz teatro no momento das celebrações dionisíacas. E o teatro é tão importante que a presença do cidadão é subsidiada pelo poder público, sendo que o próprio Arconte responsabiliza-se por toda a sua realização.

A problemática e os elementos trágicos

Katarsis

A primeira concepção globalizante da Tragédia Grega está na “Poética” de Aristóteles, e nela encontramos a “katarsis” nos três atores no palco, nos coreutas participantes, e, principalmente, no público que a assistia. “Tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes: ação representada não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação das aflições.”

Harmatia e a hibris

Quando Aristóteles desenvolve sua teoria da mudança- “metabolismo”, do destino como o “umbigo” do mito trágico, ele torna claro que nenhuma queda no infortúnio deve advir de um defeito moral do herói, mas sim de uma falha, no sentido da incapacidade humana de reconhecer aquilo que é correto e de agir seguro. O famoso dístico apolíneo “conhece a ti mesmo”, não possui nenhuma conotação de autoconhecimento ou introspecção, pois o homem grego enxergava-se através de seu reflexo na consciência do outro. O homem grego deveria buscar conhecer seus limites, exatamente para evitar exceder as medidas e incorrer numa hybis, a desmedida, numa falha, a harmatia.

A harmatia, desencadeará uma espécie de ate, a cegueira da razão, que, momentaneamente obscurece o vivente. É quando se desencadeia a relação agônica com a divindade. Estas reagem à desmedida porque a mesma aproximou um mortal de um ser imortal e a nemesis – que pode ser traduzida por ciúmes, mas que também representa uma divindade vingativa, filha de Nix, a noite e irmã das Eríneas, é desencadeada. Decorrente da Nemesis, as Moiras, que nem mesmo da vontade dos deuses dependem, ativam o desfecho trágico e o destino se cumpre.

Arete e práxis

Ainda é Aristóteles quem nos diz que “nossa compaixão somente pode existir quando somos testemunhas de uma desgraça imerecida”. Ou seja, a compaixão é uma postura nobre, integra o arete do homem grego educado, mas só se justifica quando em sua praxis o homem não se torna merecedor da desgraça, da queda, sendo parcela do sentimento que invade o público e o coro na tragédia apresentada. Goethe, referindo-se à tragédia, disse que “todo trágico se baseia numa contradição inconciliável, pois tão logo parece possível uma acomodação, desaparece o trágico”.

Do anthropos ao homus aner

A autêntica tragédia está ligada a um decurso de acontecimentos de alto dinamismo. O que sentimos como trágico deve significar a descida de um mundo de segurança e felicidade ilusória para um abismo de desgraças, na maioria das vezes irreversível. A queda é tão grande e brutal que somente heróis poderiam suportá-la. E é ele, o Herói, o sujeito do ato trágico, consciente de sua condição miserável, que tudo suporta num processo de transformação de anthropos– homem comum- em aner– que é o homem consciente de si mesmo.

Os gregos apreenderam o ekstasis dionisíaco e, neste estado de espírito manifestar seu enthusiasmos. O êxtase expressava o “sair de si”, o transpor os limites da condição humana, ultrapassar o metron – a medida de cada um. Já o entusiasmo era a penetração do homem pela divindade, o momento em que o deus falava pela boca de um mortal.

Na Tragédia ambos os processos se aliam na transformação do homem comum em aner hypocrites, aquele que finge e representando o Herói, torna-se consciente de si mesmo. E este transformar, como já o dissemos, permeará o coro como transmissor dos sentimentos, e os atores responsáveis pelo desenvolvimento temático, assim como todos os expectadores.

Todo ser humano possui sua medida e os mortais são perfeitamente capazes de por ela conduzirem todo o seu destino. Apenas alguns desafiam seus limites e estes são os Heróis- marcados por sua origem- seu guenos. Os Heróis, apesar da inexorabilidade do destino, rebelam-se contra as forças da moira – o destino, e nesta rebeldia adquirem um manto de “exemplaridade “perante os homens e os deuses. Fazem-se imortais, quer por beberem da fonte da mnemosis, a memória, quando morrem ou por poder viver em seu lugar exclusivo, na Ilha dos Bem-Aventurados.

O que é próprio de cada herói, marca registrada exclusiva, é o seu ethos – o comportamento, a forma desafiadora de responder ao sofrimento que lhe é imposto. O ethos heroico lhe indicará o caminho a seguir, seu mathos, o caminho necessário a percorrer para a katarsis, a purificação, iniciação e transformação do anthropos em aner.

Atualidade da Tragédia Grega

Podemos afirmar que a tragédia coloca em cena uma montagem que visa, no fundo, esclarecer a existência humana e seu destino. No dizer de Vernant: “À luz da dramaturgia, o homem não parece delineado como uma natureza estável, uma essência que poderia ser delimitada e definida, mas como um problema; ele adquire a forma de uma interrogação, de um questionamento. Criatura ambígua e enigmática, desconcertante: ao mesmo tempo agente e agido, culpado e inocente, livre e escravo, destinado por sua inteligência a dominar o universo e incapaz de governar a si mesmo e associando o melhor e o pior, o ser humano pode ser qualificado de deimós, nos dois sentidos do termo: maravilhoso e monstruoso”.

Vivemos hoje em um mundo em que os valores herdados da história da civilização estão colocados em cheque. Os bens são objetos de consumo imediato numa sociedade excludente e brutal para com a maioria, superficial, mecanicista, em processo de perda acentuada da intelectualidade em suas elites.

Ao propalado fim das ideologias caminhamos em direção a uma bifurcação na estrada da vida, tal qual ocorre nas ambíguas escolhas dos Heróis das tragédias: podemos seguir pelo lado da barbárie, que é o natural, inerente à dinâmica do capitalismo (aliás, recordemos Lacan que afirma ser o capitalismo uma espécie arquetípica do subconsciente), ou caminhar para um outro lado, tão complexo quanto novo e inseguro, uma trilha que conduza ao Renascer da humanidade e de seus valores.

Quando deixamos o teatro após uma apresentação de Édipo Tirano, Antígona ou de Medeia, sentimos latejar em nós as questões essenciais da existência, porque ainda carregamos os fumos do terror e da compaixão antigos; questionamos os valores sob os quais as gerações de hoje se formatam e neste sentido ainda somos ambíguos, trágicos; interrogamo-nos sobre o sentido da própria vida, comovemo-nos e então percebemos em nosso íntimo o trágico, o drama e desenvolvemos nossa própria katarsis, aproximando-nos do aner.

Após mais de vinte e cinco séculos ainda apreciamos o melhor da arte grega, pois a ambiguidade de nosso mundo e do homo sapiens demens de Morin, fazem com que a tragédia permaneça atual e cotidiana.

Espaço Literário Marcel Proust [http://bit.ly/1ZXgebi]: 02/12/2015.


Imagem: Peça “Hécuba” / aplausobrasil.ig.com.br

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