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A natureza dispõe de duas estratégias básicas para a sobrevivência das espécies. A especialização e, alternativamente, a adaptabilidade. No primeiro caso, a especialização aumenta a eficiência da espécie para atuar em um meio ambiente específico, mas pode comprometer a sua sobrevivência quando o ambiente muda. No segundo, a eficiência da espécie é reduzida, porém, havendo adaptação fácil a mudanças do meio, a espécie tem maior probabilidade de sobrevivência. A missa, como forma musical, é a demonstração extrema da segunda estratégia na história da música, enquanto a cantata é, talvez, o melhor exemplo da primeira.
A missa imperou absoluta durante a baixa Idade Média, quando se valeu da monódia, ou seja, de uma única voz. Foi o período em que o canto gregoriano era dominante. Nos séculos 11 e 12 deu a missa os primeiros testemunhos dessa adaptabilidade ao incorporar as formas primitivas da polifonia. Em seguida, derrota espetacularmente a paganização decorrente do renascentismo, novamente usando como estratagema a apropriação de elementos musicais diversos que eram anteriormente proscritos ou condenáveis, tais como a polifonia livre (ars nova), o uso de melodias populares, o apoio de instrumentos etc. Assim, durante todo o extenso período que se convencionou chamar de Renascimento e que se estende desde começos do século 15 até o despontar do século 17, a missa continua imperando, senão absoluta, pelo menos como forma dominante na música ocidental.

Todavia é nesse último momento, no nascedouro do barroco, que a missa vai sofrer seu primeiro grande revés. Olhemos a rica produção de Monteverdi (1567-1643), o primeiro grande compositor do barroco. São mais de 60 composições litúrgicas, nove livros de madrigais, várias óperas (das quais apenas três sobrevivem) e apenas duas missas, convencionais e pouco convincentes. Frescobaldi (1583-1643), com uma obra tão extensa quanto a de Monteverdi, também só escreveu duas missas. Cavali, (1602-1676), prolífero sucessor de Monteverdi, é ainda mais contido, com apenas uma missa. Corelli se abstém de toda e qualquer produção vocal. Vivaldi, que compôs tantas óperas, e tão inspirada música litúrgica, não produz uma única missa. Alessandro Scarlatti pode parecer uma exceção, pois escreveu cerca de dez missas. Entretanto essa é uma parcela irrisória se comparada com a sua produção global. Basta mencionar suas 600 cantatas, profanas e sacras. E seu quase tão prolífero filho, Domênico Scarlatti, escreve apenas uma missa (há notícias de uma segunda, porém sem nenhuma confirmação).

Na Alemanha, a situação ainda é pior, pois o luteranismo não simpatiza com a missa, embora não a proíba explicitamente. Schütz (1585-1615) e Buxtehude não escrevem uma única missa. Olhando o catálogo das obras de Teleman, o leitor desavisado pode pensar que teria escrito várias missas. São essas obras, entretanto, em sua maioria, apenas “corais” sobre versos de salmos. Por outro lado, Teleman compôs mais de 2.000 cantatas. Biber na Áustria católica é um dos poucos que compõem um número expressivo de missas. São seis ao todo, incluídas aquelas denominadas “Bruxelensis” e “Saliburgensis”, recentemente a ele atribuídas.

Na França apenas Charpentier – que entre 450 obras litúrgicas incluiu oito missas – deu a esse gênero maior atenção. Rameau e Lully não escreveram uma única missa. Campra compôs duas, e De Lalande uma única. Couperin escreveu suas duas missas para órgão.

Muitos argumentarão, por certo, que a obra prima de Bach é sua “Missa em Si”. Todavia se trata de uma obra de conveniência: uma missa “católica” produzida por um compositor luterano que buscava com isso alcançar certos favores. As missas luteranas de Bach, quatro ao todo, são missas breves – apenas o “Kyrie” e o “Glória” –, montadas integralmente com movimentos anteriores de cantatas. E, no último gênero, Bach compôs cerca de 250 obras. Ao final do barroco, a missa parecia, pois, condenada à extinção.

Por outro lado, a cantata, que nascia com o próprio período barroco e chegava rapidamente a uma exuberância inesperada, surge modestamente como uma forma secular muito simples. A ópera exige um esforço enorme não somente para ser composta, como também para a apresentação. A cantata nasce assim modesta, de dimensões limitadas, uma voz e baixo contínuo. Grandi e Rossi, sucessores de Monteverdi, são os primeiros a usar o formato. O madrigal e o moteto, fórmulas polifônicas complexas, não somente exigiam muito dos interpretes e dos compositores, como eram de difícil acesso ao público em geral.

Uma fórmula simples, a alternância entre recitativos ou ariosos e árias, era o que a ópera mostrava como adequada ao gosto do público da época. A cantata é filha menor da ópera. E o sucesso foi imenso. Na Itália, com exceção do ranzinza Corelli, nenhum compositor deixou de escrever cantatas. Na Alemanha, a cantata veio ocupar o espaço central da liturgia luterana. Apenas a França resistiu. E isso ocorreu apenas por causa da eterna luta travada contra a italianização da música francesa. Assim mesmo, muitos foram os compositores para os quais o grande moteto francês não suplantou a cantata.

Mas eis que, ao fim do barroco, tão rapidamente como ascendeu, declina a cantata. Quase nada é composto nesse formato durante o classicismo. As poucas composições que utilizam essa denominação, tanto durante o classicismo quanto no período moderno (romantismo aqui incluído), o fazem por falta de vocabulário adequado, tão somente.

A cantata não resiste à homofonia que durante o classicismo surge como conciliação entre polifonia e monódia, enquanto a missa se revigora incorporando essa fórmula nascente. Haydn compõe 14 missas. De Mozart, incluído o famoso “Requiem”, são 18. As duas únicas obras litúrgicas de Beethoven são missas. Schubert nos deixa seis missas completas e inúmeros fragmentos. O moderno Bruckner escreve cinco missas, incluindo o “Requiem”. O “Requiem” de Brahms não pode ser classificado como uma missa, a não ser pelo seu conteúdo subjetivo, para não dizer espiritual. E até do nosso conturbado mundo musical da modernidade, compositores, os mais diversos, recorrem à missa como forma necessária de expressão. Janaceck, Stravinsky, Messiaen, Britten, Panderecki, Pärt, Dusapin e outros são exemplos que mostram que a missa ainda não está morta.

Fica, pois demonstrado que, enquanto a cantata, que dominou o cenário musical durante o barroco, reflete uma estratégia estilística eficiente para a cultura aburguesada pós-Renascimento e sucumbe com o classicismo, a missa, valendo-se de uma misteriosa versatilidade, se adapta a qualquer mudança de gosto (diríamos hoje mercado?), seja por incorporação dos diversos elementos musicais exógenos à missa que viessem a ocorrer, seja pela progressiva adaptação dos próprios recursos retóricos a novas demandas. Mostra assim a missa ter sido concebida com uma eficiente adaptabilidade que nenhum outro gênero musical mostrou, nem mesmo a ópera.

Anton Bruckner 

Requiem in D minor – 5. Agnus Dei – Requiem – Cum Sanctis

Haselbock, Wolf

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Créditos de imagem: youtube.com


Publicado originalmente no jornal FSP de 11 de janeiro de 2004

 

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