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Que maravilhas não encontramos por vezes escondidas nos mais inesperados cantos desse imenso tesouro que é a música de Mozart. Alguém já ouviu falar nesse prodígio de expressividade melódica que é o inacabado Adagio KV 580a em Dó Maior para corno inglês, violino, viola e violoncelo? E, no entanto, ninguém que o conheça ficaria surpreso se viesse a ser identificado um dia como a mais bela melodia de todas aquelas que o homem já escreveu ou ouviu.

Não obstante, não é mencionado em nenhum dos correntes livros sobre a música de Mozart. O Novo Grove* aponta apenas, em seu catálogo geral das obras de Mozart, a existência desse fragmento, sem mencionar a instrumentação ou outro comentário qualquer. Hyatt King **, em sua breve apresentação da Música de Câmera de Mozart, simplesmente omite qualquer referência. Aliás, também deixa de mencionar a copiosa obra de Mozart para trompas basset e para clarinetas, que também contém momentos de genialidade incomensurável. Também o volumoso Mozart de Massin e Massin*** não se refere a esse fragmento.

Mas voltemos ao Adagio KV 580a. A boa nova que lhes trago é que já existe, há algum tempo aliás, uma soberba interpretação em disco compacto, onde foi incluído, talvez para aproveitar o espaço. Não importa. É um disco que contém um dos Septetos Nannerl, o KV 251 em Ré Maior, e o bastante popular Quarteto para oboé e cordas. Baumann é o trompista. Holliger o competentíssimo oboé, e as cordas são do Quarteto Orlando.

Mas por falar em obras negligenciadas de Mozart, de onde vieram afinal de contas esses dois bizarros Duos para violino e viola? Diz a lenda que Michael Haydn, o desditoso irmão menor de Joseph Haydn, se comprometera com um certo poderoso prelado com a composição de seis duos para esses dois instrumentos. Tendo caído doente, compusera apenas quatro, negando-se o muito religioso, mas pouco generoso clérigo a pagar-lhe antes da entrega das duas peças restantes.

Compelido pela ardente amizade que dedicava ao amigo, Mozart teria escrito essas duas obras-primas extravagantes, para que Michael Haydn pudesse receber o tão necessário pagamento. Quantas vezes não temos que agradecer as crueldades que fizeram os patronos nesse lúgubre século XVIII. Tivesse o prelado sido um pouco mais generoso, e não teríamos hoje talvez o prazer infinito de ouvir essas obras. Abençoada avareza.

Mas Mozart deveria ter acolhido essa oportunidade com ardor, e sua profunda amizade pelo jovem Haydn transparece nesses dois diálogos plenos de luz e espontaneidade. Forçado pelas circunstâncias (“como não se ouve outra coisa em Viena, senão Bach e Haendel”, reclamara pouco antes) Mozart se debruçava sobre transcrições para cordas de obras de Bach, principalmente de suas fugas (três dessas transcrições foram recentemente lançadas com o Trio Grumiaux em disco compacto, impecável). E esse aprendizado transparece nos dois Duos. Há até cânones lá incluídos.

Pois bem, essas injustamente esquecidas obras tiveram a clássica interpretação dos Pasquier passada para disco compacto, além de uma nova versão com Kremer. Como todo mundo sabe, Mozart gostava de compor para ele mesmo tocar, fosse ao piano, ao órgão, ao violino ou à viola. Mas era esse último instrumento que preferia, quando tocava em reuniões de família, com amigos, pelo simples prazer de fazer música em comunhão com aqueles que queria bem. E é a sua viola que escutamos nessas obras. E não há outras peças que permitam maior intimidade com Mozart.

*The New Grove – Mozart, ed. Stanley Sadie, MacMillan, Londres, 1985.

**A. Hyatt King, Mozart Chamber Music, BBC Publications, Londres, 1980.

***Jean et Brigitte Massin, op. cit.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 03/07/1988.

Amadeus Mozart Adagio K580a – English

Giuliano Giuliani

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https://youtu.be/ePFIlpBJq1o


Imagem: WikiCommons

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