Texto de Claudia Mattos, Historiadora da Arte.

Durante os estudos para sua tese de doutorado sobre Sandro Botticelli, defendida em 1891 na Universidade de Estrasburgo, o historiador da arte Aby Warburg centrou-se na análise do fenômeno da persistência de formas antigas na cultura do Renascimento. Este anacronismo inerente à imagem tornou-se o grande tema de sua obra, levando-o à construção de um modelo de funcionamento da imagem apresentado várias décadas mais tarde em seu Atlas Mnemosyne. Para Warburg a imagem funcionava como um arquivo de energias psíquicas, ou dinamogramas, que transportavam experiências primordiais e traumáticas através dos tempos, em forma de repetição obsessiva de gestos (sua análise examinava primeiramente a figura voluptuosa da Ninfa).

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Fig1. Jarra Calyx com relevo de Menades dançantes, 1.século aC, Mármore, Metropolitan Museum, NY.

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Fig2. Sandro Botticelli, O Nascimento de Venus, têmpera sobre tela, 172,5 x 278,5 cm, 1486, Uffizi, Florença.

 

A capacidade misteriosa da imagem de transmitir pulsões vitais através dos tempos, sua pós-vida (Nachleben) como dizia Warburg, é de fato uma de suas características essenciais. No livro Anacronic Renaissance, os historiadores da arte Alexander Nagel e Chirstopher Wood exploram, para a cultura do Renascimento, as consequências dessa capacidade da imagem de dobrar o tempo, criando uma estrutura complexa composta pelo encontro entre presente passado e futuro: “Com seu poder de impor, mas não explicar uma dobra do tempo sobre sim mesmo, a obra de arte dos séculos XV e XVI foi capaz de construir um caminho de volta aos múltiplos passados europeus, à Terra Santa, a Roma – monárquica, republicana, imperial e cristã – e às vezes ao legado Bizantino romano.” (Nagel e Wood, 2010, p.10). Porém ao lado da condensação temporal, a imagem, no mesmo período, procede também à condensação de espacialidades diversas. Com isso, de acordo com os autores, construiu-se um poderoso instrumento político que moldou as relações coloniais: “As redes comerciais e coloniais que estavam, enquanto isso, unificando o globo, ofereciam a evidencia do outro através de rupturas no espaço e no tempo. Os dois aspectos do remoto – espacial e temporal – se confundiram e daquele momento em diante, não-Europeus foram condenados como não-sincrônicos, fora de sincronia, presos em estados de desenvolvimento incompleto.” (idem)

A capacidade da imagem de condensar tempo e espaço em uma estrutura única e retoricamente forte contribuiu grandemente para o status privilegiado que ela adquiriu na modernidade. Compreender esta operação da imagem é fundamental para os estudos da História da Arte no Brasil.

No Brasil, nos tempos de colônia e além, os produtos sofisticados advindos da Europa, mobiliários e tecidos, carruagens e livros, assim como ideias iluministas, conviviam com estruturas medievais de produção e com o pensamento religioso conservador das missões e irmandades. Conviviam também com a temporalidade e a espacialidade dos povos nativos e dos povos africanos importados pelo sistema de escravidão. Cruzamentos de tempo e espaço diversos era de fato a marca da vida colonial e continuou sendo a marca das sociedades que se desenvolveram no continente americano. O rastro de muitos passados e muitos futuros em um mesmo presente compunha o cotidiano dessas terras. Com sua maleabilidade inerente e em sua estrutura complexa, a imagem tornou-se um meio eficiente de representação dessa experiência de multiplicidade. A percepção dessa realidade complexa e contraditória é frequentemente comentada na cultura visual construída no Brasil. Aqui tomamos apenas um exemplo: a tela “Interior de Floresta com Índio e Trem”, de Angelo Agostini, pertencente à coleção Fadel.

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Fig. 3 Angelo Agostini, “Interior de floresta com índios e trem” Óleo sobre tela, 1892, 146 x 97cm Coleção Fadel.

No quadro, vemos o último vagão de um trem atravessar a densa floresta tropical, correndo sobre trilhos importados da Inglaterra e soltando uma densa nuvem de fumaça. Em primeiro plano, um tronco de árvore abatida marca a presença do homem Europeu e seu esforço de civilização. À esquerda, uma família de nativos observa perplexa a cena. O pai espreita agachado por entre a mata, enquanto a pequena criança estende os bracinhos em direção à mãe, pressionada contra um grande tronco de árvore. À direita, em meio plano, outro índio contempla a passagem da máquina monumental. O tema do quadro é sem dúvida o confronto, o embate de temporalidades. O autor não deixa, no entanto, de também usar a imagem para realizar um comentário crítico: enquanto que na iconografia já bem estabelecida ao longo do século XIX, o trem, símbolo de progresso, sempre aparece atravessando a tela da esquerda para a direita, ou vindo de encontro ao espectador, o vagão figurado por Agostini passa, deixando-nos em meio à mata, tão perplexos quanto os índios.

 

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