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Como músico, o lugar de Wagner é entre os pintores, como poeta seu lugar é entre os músicos e como artista seu lugar é entre os atores”, disse Nietzsche sobre aquele que tanto perturbava seus pensamentos. Se me fosse permitido parafrasear Nietzsche eu diria que como músico, o lugar de Bach é entre os escultores e como arquiteto seu lugar é entre os músicos. E como artista em geral seu lugar é entre os grandes estrategistas. E sei muito bem os riscos que corro. Mas haverá um pintor maior que Beethoven? Ou um poeta mais completo que Michelangelo? Ou ainda mais drama do que em Goya e mais harmonia do que em Cellini?

Imaginação e expressão, emoção e evocação, eis os dois polos entre os quais Bach encontra a justa medida para sua arte pessoal, em que o agudo sentido de proporções é a única ferramenta eficaz. E nenhum outro segmento da obra de Bach demonstra esse equilíbrio supremo como as suas grandes obras corais, principalmente a Missa em Si Menor e a Paixão Segundo São Mateus.

E é frente à dicotomia entre os binômios expressão-imaginação versus evocação-emoção que ganha pertinência qualquer discussão sobre interpretações da música de Bach. No polo extremo, evocação-emoção, se situam as interpretações clássicas de Klemperer da Paixão e da Missa em Si Menor. E esse desequilíbrio poderia comprometer inteiramente o esforço do homem de ferro, não fosse sua absoluta integridade pessoal e respeito pelo texto de Bach. Foi também muito ajudado pela arte insuperável de Schwarzkopf e Fischer-Dieskau além desse Evangelista absoluto que é Peter Pears e da Orquestra e Coro Filarmonia. Mengelberg, cuja concepção também se situa nesse mesmo extremo, já não é tão feliz e deve ser evitado. No polo oposto imaginação-expressão está a antológica interpretação de Mogens Wöldike com a Orquestra da Ópera Estadual de Viena e os Coros de Câmera da mesma cidade. Stich- Randall, Kmentt, Berry e outros são dignos coadjuvantes. Se Klemperer triunfa sobre sua própria inclinação emotiva pela integridade, Wöldike pela devoção subjuga suas concepções excessivamente intelectualizadas. São ambas, cada uma a sua maneira, versões inestimáveis. Mas tanto uma quanto a outra rejeitam a essência da música de Bach, que é um sentido transcendente do equilíbrio. Apenas Karl Münchinger se mostra inteiramente satisfatório sob esse aspecto. E a Orquestra de Stuttgart é inteiramente adequada, embora sem o luxo da Filarmonia com Klemperer ou da Filarmônica de Berlim da versão de Karajan. Também bastante efetivos são os solistas escolhidos por Münchinger, com Pears tão bem quanto na versão de Klemperer. Sente-se a falta apenas da Schwarzkopf. E Prey é um digno substituto para Fischer-Dieskau como Jesus. A não ser que você tenha razões específicas para escolher Wöldike ou Klemperer essa deveria ser a primeira escolha.

Richter apresenta duas versões, ambas na Archiv, da Paixão Segundo São Mateus. Haefliger nas duas versões é digno competidor de Pears e seu timbre menos heroico se adapta melhor ao papel. Fischer-Dieskau assume a responsabilidade das árias para baixo e barítono, o que me parece mais apropriado para a sua arte. Seefried está bem na primeira versão, mas não substitui Schwarzkopf, como também acontece com Mathis na segunda. E a Orquestra e o Coro Bach de Munique são os grupos disciplinares de sempre.

Não há muita diferença entre essas duas bem cuidadas edições.

Os mesmos recursos técnicos, como tempo e acentuação, são adotados nos dois casos e não consigo entender as razões para uma segunda edição. Todavia, como quase sempre, Richter nos deixa com uma desagradável sensação de insatisfação. Seus tempos rápidos não revigoram Bach e há sempre um excessivo rigor com os mesmos como se o metrônomo imperasse absoluto. Vejam bem, não falta senso dramático. Falta devoção. Os contornos metódicos são desnecessariamente evidentes. Tudo é muito automático e sem qualquer espontaneidade.

O vício de Harnoncourt é de outra natureza. Nesse caso o intérprete sucumbe não a uma rigidez técnica, mas a uma concepção academicista alienante. A Richter falta afeição, a Harnoncourt falta sensibilidade. Essa última também é uma versão bem cuidada e merece nossa admiração. Equiluz, personalíssimo, é um notável Evangelista. E o uso de contra tenores e de meninos sopranos não compromete a edição da Telefunken. E, como sempre, o Concentus Musicus de Viena é impecável.

Se os maneirismos de Karajan são às vezes aceitáveis em Beethoven, em Bach se tornam intoleráveis. Se você é fervoroso devoto de Karajan então compre a versão de Klemperer, ou de Münchinger. Não conheço as versões de Somary, Jochum e Corboz.

A Paixão Segundo São João reedita em grande parte o que dissemos da Segundo São Mateus, exceto pela existência de duas versões solitárias. Uma, bastante atraente com Schneidt com o Regensburger Domspatzen e o Collegium St. Emmeram e outra, em minha opinião a melhor existente, com Gillesberger e o Concentus Musicus.

Esse não é o lugar para discussões musicológicas e em consequência não abordarei o problema da Paixão Segundo São Marcos.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 25/12/1983.

Johann Sebastian Bach

Mass in B Minor, BWV 232

Boyd Nell Orchestra & BBC Chorus

Peter Pears, tenor

Dir. George Enescu

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