Em Destaques, Música

Recentemente um amigo, melômano semifanático, estranhou a extensão de minha discoteca haendeliana em discos compactos. E, de fato, nessa opção tecnológica tenho mais discos de Haendel do que de Bach, ou de Mozart, ou de Beethoven. Mas globalmente o mesmo não acontece. Tenho mais discos convencionais de Bach, ou de Mozart, de que de Haendel. Todavia isso também não é indício de preferência.

Lembro-me de um pequeno ensaio de Ernest Newman*, o primaz dos críticos musicais, em que afirmava que Bach era um músico para os musicistas e Haendel para o povo. E há por certo uma boa dose de verdade nessa afirmativa. O estado de espírito com que colocamos um disco de Bach na leitora laser é certamente distinto daquele com que nos preparamos para ouvir Haendel. Desconfio que esperamos de Bach um pouco mais do que simplesmente o prazer estético que extraímos de Haendel. Ou será a sensação que experimentamos com um de natureza distinta daquela que o outro nos oferece?

É claro que a resposta a essa pergunta seria negativa se estivéssemos nos restringindo, por exemplo, aos Concertos Brandenburgueses de Bach, de um lado, e aquelas do Op. 6 de Haendel, de outro. Todavia, uma comparação entre O Messias e a Missa em Si Menor já mostraria alguma diferença. A preocupação de Bach com simetria e simbolismos talvez seja indicativo de maior esforço intelectual, ausente certamente daquela espontaneidade que é marca pessoal de Haendel. Mas esses indícios indicam uma preocupação de Bach com elementos externos à música que não são, como em Haendel, de ordem dramática.

Ernest Newman classifica Bach como um músico romântico. Acho que ele confunde romantismo com introspecção. Haendel, em comparação com Bach, mostra certas características que podem ser associadas com o que correntemente chamamos de extroversão. Muito bem, já chegamos em algum lugar. Haendel é extrovertido e espontâneo. Bach é introvertido e intelectualizado. Mas será que com essa conclusão explicamos alguma coisa? Seria O Messias assim tão diferente da Missa em Si Menor?

É claro que há diferenças de estilo que nos permitem distinguir uma obra da outra, mesmo quando não reconhecemos as melodias. Talvez a questão possa ficar mais clara se recorrermos às últimas obras de cada um. Pois é inegável que os grandes artistas acentuam suas próprias peculiaridades de estilo à medida que passa o tempo. Assim foi com Haydn, Mozart e principalmente com Beethoven e Schubert. Os grandes liberam-se de convenções com a idade e fazem desabrochar seus maiores dons com o tempo. É assim também com os vinhos.

É claro que assim traremos à cena as grandes obras orgânicas de Bach, tais como A Arte da Fuga e A Oferenda Musical e a Segunda Parte d’O Cravo Bem Temperado. Enquanto isso, Haendel compunha seus últimos oratórios, Jephtha e The Choice of Hercules, com exatamente as mesmas intenções aparentes com que compusera O Messias ou a Ode a Santa Cecília, dez anos antes. Essa diferença já nos permite estabelecer mais uma diferença entre Bach e Haendel.

Um dos fenômenos mais interessantes da natureza é o que os especialistas chamam de neotenia. Um artifício de que lançam mão certas espécies para aumentar sua capacidade de sobrevivência. É uma regra geral da natureza que os animais superiores atravessem uma fase juvenil antes de se tornarem adultos e enfrentarem seu objetivo maior, a procriação. Durante essa primeira fase eles mostram acentuada capacidade de aprendizado e, portanto, de adaptação. Neotenia é o fenômeno observado em algumas espécies em que essa fase em comparação com espécies próximas, é estendida. O homem é um caso desses, pois mesmo com os inúmeros artifícios que engendrou para prorroga-la, sua fase adulta é apenas duas vezes mais longa que a fase juvenil, no que difere da grande maioria dos mamíferos, incluindo os demais primatas, em que a fase juvenil é da ordem de dez vezes menor que a adulta.

Haendel, sem inquietações formais e acomodado ao próprio sucesso, não mostra a mesma intensidade de reflexão que Bach, para quem cada obra tinha que ser uma descoberta. Haendel contentava-se em fazer o próximo feliz com seu divino dom. Bach precisava desvendar o universo. Haendel compunha para a humanidade. Bach para a posteridade.

E aqui ficam algumas sugestões para aqueles que querem se envolver com essas questões um pouco obscuras e muito subjetivas. A recente gravação de A Arte da Fuga em disco compacto com o Hespèrion XX, sob a direção de Jordi Savall, é pelo menos tão boa quanto qualquer outra que exista em CD ou LP. Para A Oferenda Musical, a recém-editada (em compacto) versão com o Leonhardt que proponho o Segundo Livro d’O Cravo Bem Temperado em CD. É um bom começo.

*Ernest Newman, Essays from the World of Music, vol. I, Sel. Felix Aprahamian, John Calder, Londres, 1976.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 15/05/1988.

Johann Sebastian Bach

Contrapunctus 1 – Die Kunst der Fugue BWV 1080

Hesperion XX – Jordi Savall, Director

Clique aqui!

Facebooktwitter