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É preciso, em primeiro lugar, lembrar que Bach foi um formidável improvisador. Em segundo, que, à sua época, a improvisação era uma arte inerente à música. Em terceiro, que Bach também era um grande virtuoso ao cravo ou a outro instrumento qualquer de teclado. Quarto, que Bach foi um infatigável pesquisador de sonoridades tendo inclusive inventado um novo instrumento de cordas. E em quinto, que não houve músico mais liberal quanto às concepções estéticas. Assim, não há nada mais inapropriado do que a imagem de um austero, rígido e inflexível espírito lógico para cujas composições existem fórmulas inalteráveis e soluções únicas. Essa visão gerou as mais bizarras teorias sobre “a maneira correta de interpretar a música para teclado de Bach”, desde a condenação direta do uso do piano até esse perene fantasma da necessidade de isenção. De minha parte acredito que se assenta melhor ao Bach histórico a presunção oposta, ou seja, o conceito de que as partituras para teclado atuam como manequins a serem vestidos pelo intérprete que fica, assim, com a responsabilidade de imprimir vida ao objeto inanimado que está adornando.

É claro que não podemos levar tal princípio a extremos sob riscos de adulteração. Entretanto, prefiro essa ameaça ao tédio que é frequentemente ocasionado pela primeira proposta.

Todavia, é preciso não esquecer que há um terceiro parceiro, o ouvinte, que também tem direito a usar sua própria imaginação. É preciso, portanto, que o intérprete não ocupe inteiramente o espaço. O bom figurinista sabe que tem que deixar algum terreno para a fantasia do observador. Talvez seja por essa razão que apenas os aficionados menos imaginativos se satisfaçam plenamente com Glenn Gould, que ocupa sozinho todo o espaço deixado por Bach. Ficamos sempre maravilhados com a riqueza da inventividade e da expressividade de Gould em uma primeira audição. Mas quem suportaria ouvir a obra completa de Bach para o cravo, repetidas vezes, com Gould?

Se você tem imaginação própria e espera ouvir a música para teclado de Bach com frequência, compre a coleção da obra integral para cravo de Bach com Isolde Ahlgrimm, que nos oferece uma versão fervorosa e rica de sonoridade, mas que, não obstante, reserva para o terceiro parceiro um lugar de distinção. Sob esse aspecto Ahlgrimm tem maior sucesso que Leonhardt. Todavia esse último é extremamente competente em quase tudo o que gravou e se por vezes não nos deixa, a nós ouvintes, muito espaço, é porque o ocupa com grande competência, principalmente nas peças menos complexas como os Pequenos Prelúdios para Wilhelm Friedemann ou do Pequeno Livro de Anna Magdalena. É preciso também não se omitir, como fez Zuzana Růžičková e, por que não, até certo ponto também a grande dama do cravo, Wanda Landowska. É preferível o engajamento de Malcolm Hamilton n’O Cravo Bem Temperado ou a volúpia colorística de Kipnis ou de Newman, ou ainda a sensibilidade sensual de Alan Curtis ou de George Malcolm. Eis o tríplice dilema. Até que ponto deve ir o respeito à partitura? Onde reside a responsabilidade interpretativa do instrumentalista? O que, e não quanto, deve ser deixado para a imaginação do ouvinte? Ou seria ele uma simples testemunha neutra? Kirkpatrick, dileto discípulo de Landowska, parece preferir não estimular a participação do ouvinte levando ao extremo um dos lados do ambíguo pensamento de sua mestra. É bom que, como Valenti, se concentre em Scarlatti, onde esses problemas não emergem.

Ninguém melhor que Fischer e, mais recentemente, Sviatoslav Richter compreenderam esse multifacetado problema da interpretação de Bach ao piano. Eis por que permanecem insubstituíveis essas interpretações antológicas. É verdade que muitos dos grandes pianistas se mostraram fecundos intérpretes de Bach, embora eventuais. É o caso de Kempff, de Michelangeli, de Pollini de Brendel e do saudoso Lipatti.

Há também uma jovem geração de cravistas, dentre os quais Koopman é a grande revelação. Seu Bach é brilhante e o Primeiro Livro d’O Cravo Bem Temperado rivaliza com o que de melhor gravou Leonhardt. Outra revelação é a francesa Lagacé que suplanta todas as suas precursoras conterrâneas, de Verlet a Dreyfus. Pinnock é também um promissor intérprete de Bach ao cravo.

Em resumo, se você quer ter a obra completa para cravo de Bach fique com a boa coletânea com vinte discos de Isolde Ahlgrimm. Mais do que a metade desse acervo pode ser encontrado com Leonhardt, certamente o mais fecundo intérprete atual de Bach ao cravo. Alguns novos merecem sua atenção. Koopman e Pinnock em primeiro lugar. No piano Fischer e Sviatoslav Richter permanecem insubstituíveis. Kempff está excelente no Primeiro Livro d’O Cravo Bem Temperado e em algumas das Suítes. Gould exige certo grau de tolerância dos ouvintes, mas não deve ser descartado a priori. Experimente você mesmo. E para terminar, devo deixar claro que considero dispensável o esforço do brasileiro João Carlos Martins, cujas insuficiências técnicas ampliam o maneirismo gratuito.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 15/01/1984.

Johann Sebastian Bach

Isolde Ahlgrimm (pedal harpsichord)

Goldberg Variations BWV 988

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