Em Cinema, Destaques

A ditadura decorrente do golpe de 1964 teve forte influencia sobre o cinema brasileiro, gerando uma série de aspectos que até hoje, 30 anos depois dos militares voltarem para os quarteis, ainda sobrevive em nosso cinema.

Vejamos: a estrutura de produção de cinema no Brasil pouco se modificou até, aproximadamente, o final dos anos 50 do século passado. Lembremos que, até então e desde a década de 30, os estúdios eram o centro da produção cinematográfica. Estúdios como a Atlântida e a Cinédia, entre vários outros, produziam filmes para o mercado nacional, com bastante sucesso. Os paulistas viriam a imitar este padrão, criando a Vera Cruz e a Maristela, entre outros. Um ou outro filme era produzido à margem dos grande estúdios. O Cinema Novo passa a produzir, sistematicamente, dentro de um outro modelo: o das pequenas produtoras, muitas das quais eram as pessoas jurídicas dos diretores dos filmes. Com esse modelo já constituído, o país sofre o golpe de 64 e o cinema não escapa das garras da ditadura. Alem da censura, e em grande parte para controlar a produção, a ditadura cria a Embrafilme, mesmo que atendendo a velhas reivindicações dos cineastas. Como órgão estatal, com um bom volume de verbas, a Embrafilme passa a centralizar a produção, incentivando o modelo das pequenas produtoras. Cada cineasta, para sobreviver nesse esquema, tinha praticamente que ter sua produtora. Em paralelo a isso, uma grande diversidade de produtores voltados para o filme mais comercial, criam um novo gênero, a pornochanchada. Herdeira da chanchada, como cinema popularesco, mas sem o apoio de grandes infra-estruturas, a pornochanchada era um cinema barato, tecnicamente deficiente e produzido por pequenas produtoras independentes. Mas com grande aceitação do publico e à margem da Embrafilme. Esse equilíbrio se mantém até o final da década de 70, quando a crise econômica do começo dos anos 80 tira dinheiro da produção e, sobretudo, dos espectadores. Começa aí uma modificação do publico do cinema brasileiro que vai ter grande impacto em todos os seus desenvolvimentos posteriores. O público popular se afasta dos cinemas, substituído por um público marcadamente de classe media. O numero de salas começa a diminuir. E, para completar o quadro, como vai acontecer no cinema mundial (sobretudo o americano) a faixa etária do publico começa a baixar. De um publico maduro, ou de meia idade, caminha-se cada vez mais para o publico jovem e adolescente. Tudo isso tem um impacto devastador no nosso cinema.

Em 1985 os militares voltam para o quartel e os brasileiros comemoram a “redemocratização”. Mas toda uma serie de instituições, modelos e estruturas criadas pela ditadura continuam sem modificações. Muitas delas estão aí até hoje. Eles voltaram para o quartel, mas os quadros civis da ditadura continuaram no poder. As marcas da ditadura continuam no sistema educacional, na saúde, nas policias, no judiciário. Continuaram também no cinema, ainda que a censura tenha sido abolida. Até o final da década de 80, a Embrafilme continua com seu modelo de produção intocado, enquanto as produtoras de pornochanchada fecham e o publico foge dos cinemas. Aquele modelo estava em crise, mas o remédio ministrado no governo Collor matou o paciente. Em 1992 um único filme brasileiro chega às telas. Para comparação, em 1978 a produção havia chegado a 100 filmes.

A então chamada “Retomada do Cinema Brasileiro”, que começa em 1994 vai encontrar seu primeiro apoio institucional na Lei de Incentivos Fiscais (Lei Rouanet). Este modelo de produção não altera significativamente o modelo anterior: continuam sendo as pequenas produtoras, quase que os cineastas individualmente, que vão buscar o incentivo. Como se dizia na época, trocaram-se os burocratas da Embrafilme pelos diretores de marketing das empresas como juizes da produção.

Algum tempo depois, é criada a ANCINE (Agencia Nacional do Cinema) e a Lei do Audiovisual, que dão mais flexibilidade à produção. Mas, modificação real do modelo só vai acontecer com a entrada do poderio da Rede Globo no mercado, através da Globo Filmes. Pela primeira vez há uma grande empresa por trás dos investimentos cinematográficos. Isso faz com que algumas pequenas empresas que cresciam aos poucos dêem um salto e se credenciem ao que podemos chamar de grandes produtoras. Geralmente nucleadas por um produtor ou diretor e apoiadas – ou se apoiando – no poderio da Globo, essas produtoras começam a dominar o mercado. Embora a presença da Globo Filmes dinamize o mercado (a produção sobe para mais de 100 filmes por ano, o número de espectadores bate recordes históricos) ela traz como efeito colateral a multiplicação de comédias digestivas, de baixa qualidade, construídas em torno de atores da Rede Globo de Televisão, com grandes doses de erotismo e pouquíssima inteligência. São as merecidamente chamadas “globochanchadas”, que, de certa forma continuam a tradição popularesca das chanchadas e das pornochanchadas – só que agora seu público não é mais o “povão” e sim uma classe media infantilizada, endinheirada e mal informada.

Mas a maioria das produtoras brasileiras continuam pequenas, quase individuais, refletindo toda a precariedade que ainda impede nosso cinema se transformar numa “industria”. Ainda se reflete aí o modelo, a estrutura que foi criada durante a ditadura, a da fragmentação que dificulta enormemente o enfrentamento com o filme estrangeiro, sobretudo americano, fragmentando o “poder de fogo” do nosso cinema numa multidão de pequenos produtores fragilizados. E revelando onde está o verdadeiro gargalo que impede o nosso cinema de se transformar numa industria: a distribuição e a exibição que, de um modo ou de outro, são dominadas pelo cinema americano.

Para não terminar com uma nota totalmente pessimista, é importante destacarmos que nos últimos anos a Ancine, sob forte pressão dos cineastas e suas associações, vem propondo novas formas de produção para o cinema e para a televisão através do Fundo Setorial do Audiovisual. Com apoio estatal, este modelo de produção tem potencial para modificar o velho modelo fragmentário criado durante a ditadura. A volta dos militares para o quartel está comemorando 30 anos, dez a mais que a duração da própria ditadura. E só agora que, talvez, o cinema brasileiro comece a se livrar da herança estrutural que herdou daqueles tempos de arbítrio.


Créditos de imagem: gbarbosa.com.br

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