Em Conjuntura Internacional, Destaques

Por Antonio Gelis Filho

O último preconceito cuja expressão é livre no ocidente parece ser a russofobia. Nas páginas dos jornais europeus e norte-americanos e em suas colunas de comentários, expressões como “Putin é o novo Hitler”; a “Rússia é um país primitivo que deve ser contido a qualquer custo”; “todos os russos são mafiosos”; “os russos devem pagar por apoiar o Kremlin” e outras do gênero têm livre curso.  O evento Snowden foi simplesmente apagado da memória coletiva Ocidental. O ódio à Rússia foi “normalizado”.  Como e por quais razões isso aconteceu?

Devemos considerar a existência de três razões principais para isso. A primeira é a recusa do país em aceitar o papel de perdedor da Guerra Fria. Aceitá-lo seria continuar a conviver com a exploração desenfreada de seus recursos naturais pelos países ocidentais, algo disseminado nos anos 90 e intermediado pelos infames “oligarcas”. A chegada de Putin ao poder marca a reversão dessa tendência e a concentração do controle de tais recursos no Kremlin. A segunda razão foi a colocação de obstáculos à livre expansão do capitalismo financeiro ocidental no país. Diferentemente do que ocorreu nos países da Europa Oriental e em muitos países da América Latina, o trânsito de fundos de investimentos internacionais é muito controlado na Rússia. Em especial, a capacidade desse capital de modelar instituições nacionais a seu gosto é muito pequena. Esse talvez tenha sido o pecado mortal da Rússia. A terceira razão para a demonização do país pelo Ocidente foi sua resistência à incorporação da Ucrânia ao espaço geopolítico ocidental. É importante notar que a região mais acentuadamente pró-ocidental na Ucrânia é o extremo ocidente, onde se localiza a cidade de Lviv (Lvov em Russo). Essa região apenas foi incorporada à Ucrânia na Segunda Guerra Mundial. A Criméia, por sua vez, nunca havia sido Ucraniana até ser transferida em 1954 para a então República Socialista Soviética da Ucrânia, em manobra interna do comando da União Soviética provavelmente por razões administrativas. Esperava-se no Ocidente que a Rússia aceitasse a expansão da União Europeia e possivelmente da OTAN até suas fronteiras de forma passiva, mas a reação inesperada do Kremlin criou uma enorme humilhação política para o Ocidente e esse reagiu com uma verdadeira guerra econômica contra a Rússia.

O Ocidente de hoje não é o mesmo dos tempos da queda do muro de Berlim. Incapaz de cumprir suas inúmeras referências vagas e irresponsáveis a uma ação real na Ucrânia, politicamente confuso por conta da crescente insatisfação popular com seus governos decorrente da “crise que nunca termina”, e que lança a desigualdade social a patamares inacreditavelmente altos, o Ocidente reage como apenas os inseguros e os confusos reagem: correndo riscos desnecessários e provavelmente inúteis. Aí entram as sanções econômicas contra a Rússia.

A lógica das sanções econômicas, em seu limite, é a de causar tanto sofrimento ao povo russo que esse finalmente “ouvirá a voz do bom senso”, morrerá nas ruas derrubando o governo do país e se submeterá a quaisquer demandas ocidentais. Isso provavelmente não acontecerá, mas caso acontecesse, as demandas certamente incluiriam a abertura do país ao mais predatório capital especulativo ocidental, capital esse que hoje encontra muita dificuldade para manter seus resultados nos patamares de outrora. Outras três razões sugerem que isso não acontecerá.

A primeira razão é que as sanções econômicas contra a Rússia ferem a Europa também. A redução de exportações para a Rússia já feriu até mesmo a economia da Alemanha, e mais ainda a de países da Europa Oriental. A segunda razão é que a desvalorização do rublo, até certo ponto, compensa a queda do preço do barril de petróleo, pois as empresas russas vendem o produto no exterior e recebem na moeda norte-americana, mas pagam suas despesas em rublos. Como o custo de produção de petróleo russo é muito menor que o custo de produção do petróleo norte-americano do xisto, manter o preço do petróleo em patamares mais baixos é também uma maneira de ferir uma das únicas indústrias em expansão nos Estados Unidos. Como qualquer guerra, a guerra econômica produz baixas em ambos os lados. Finalmente, o mundo de hoje conta com uma variável geopoliticamente irrelevante nos anos 80, mas decisiva hoje: China. E a relação entre Rússia e China tem se aprofundado muito, não apenas em termos políticos e econômicos, mas também no âmbito militar. É improvável que a China deixe de apoiar seu aliado estratégico.

Há alguns meses a mídia anglo-saxônica estava cheia de explicações sobre as razões pelas quais a Rússia nada conseguiria na Crimeia. Semanas depois a Crimeia tornava-se parte do país. Pouco tempo depois, a mesma mídia explicava por quais razões os rebeldes “pró-Rússia” seriam derrotados no leste da Ucrânia. Mas as duas mais importantes cidades da região, Donetsk e Lugansk estão hoje sob o controle desses mesmos rebeldes e Kiev desistiu, ao menos por enquanto, de tentar recuperá-las. Hoje a mídia ocidental prevê o “colapso da Rússia”. Será mesmo? É difícil dizer qual será o resultado dessa Guerra Econômico-Financeira. Mas caso a Rússia resista a essa crise e siga de alguma maneira em frente, a última arma do Ocidente terá sido neutralizada. As regras do jogo financeiro mundial, então, terão sido expostas em todo seu absurdo e vazio, e a possibilidade de vida econômica fora do sistema financeiro vigente terá sido comprovada. Os efeitos de uma eventual derrota nessa verdadeira “Batalha de Stalingrado” das finanças internacionais poderão ser tão devastadores para os perdedores do ocidente como o foram para aqueles derrotados em sua primeira versão. Há muita coisa em jogo nas estepes da Eurásia.

Publicado por Carta Maior.

Antonio Gelis Filho. Professor da Fundação Getúlio Vargas/EAESP.


Créditos de imagem: Sebastian Derungs / Flickr

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