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Por Najar Tubino

Se o futuro da humanidade depende da redução das emissões de gases estufa para que a concentração não provoque dois graus de aumento na temperatura nos próximos anos estamos completamente condenados. A base da argumentação é o Protocolo de Quioto, que teoricamente ainda está em vigor. Ele consagrou três iniciativas para definir as reduções das emissões dos gases estufa: comércio de emissões, implementação conjunta e Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL. Trocando em miúdos: tudo isso transformado em certificados, negociados em bolsas, ou em mercado de balcão, podendo ser fatiados em opções. Ou seja, trata-se do subprime climático. Um negócio escandaloso, com o perdão da palavra porque o caso envolve comerciantes, investidores, fundos de pensão.

A boa ação da comunidade internacional, quando definiu as tratativas de Quioto, dividiu os países por dois grupos. Os desenvolvidos, os sócios da OCDE – 34 membros – e os em desenvolvimento. Os primeiros poluem desde o início da Revolução Industrial no século XVIII. Os outros, principalmente os emergentes, aumentaram suas emissões no final do século XX. A regra então foi definida: os que poluem emitem certificados de redução de emissões e podem investir em projetos de fixação de carbono, ou de mudança de matriz energética nos “pobres”, que ainda precisam de tecnologia. Os certificados de emissões podem ser negociados e explodiram no mundo, com bolsas climáticas sendo criadas em toda a Europa e nos Estados Unidos – no Brasil a BVRio foi criada em 2011.

Mercado que gira mais de US$700 bilhões

O professor José Célio Andrade, da Universidade Federal da Bahia especialista em financiamentos do mercado de carbono aponta para uma cifra de US$700 bilhões em recursos transacionados entre os anos 2006 e 2011 – uma média de US$116 bilhões ao ano. A maior bolsa climática é a europeia – a ECX -, porque foram eles que definiram regras para reduzir as emissões em 8%, de acordo com o Protocolo de Quioto até 2012. A ECX tem sede em Londres, na citi financeira, o centro da especulação mundial. Ocorre que uma auditoria do Tribunal de Contas da União Europeia de 2015 – sede em Luxemburgo – chamada “Integridade e Execução do Regime de Comércio de Licenças de Emissão da União Europeia” aponta para uma cifra de 10 bilhões de euros para as licenças negociadas no mercado que estão no Registro Único da UE.

O Tribunal também aponta um excesso de licenças na ordem de quase dois bilhões – uma licença corresponde a uma tonelada de CO2 emitida -, que é apontada como uma das razões da queda de preço da tonelada de carbono nas bolsas – na ECX caiu de 22 euros por tonelada para cinco euros entre 2011 e 2012. A própria Comissão Europeia adiou para 2019 o leilão de 900 milhões de licenças, como forma de enxugar o mercado e também garantir uma sustentabilidade nos preços do carbono.

Analisar a qualidade dos projetos iguais à subprime

Mais um detalhe: uma rede de organizações do meio ambiente e justiça social que trabalha em cima das políticas da União Europeia registra que o primeiro banco a lançar “um produto estruturado de carbono” foi o Credit Suisse numa associação com a Ecosecurities em novembro de 2008. Será uma coincidência: quando estourou a crise financeira nos Estados Unidos e a bolha do subprime estourou, os investidores e fundos de investimento entraram no mercado de carbono. A ideia era transformar o carbono na maior commodity do século XXI. Registra a FERN no estudo “Derivativos financeiros no mercado de Carbono”:

– O Credit Suisse agrupou créditos de carbono de 25 projetos diferentes em vários estágios de aprovação pelo MDL, localizados em três países e que haviam sido desenvolvidos por cinco consultores. O pacote foi desenvolvido em três porções, representando diferentes níveis de risco. Porém, o Fundo Prototipo de Carbono (PCF), do Banco Mundial já realizou um serviço parecido, agrupando projetos controvertidos como o projeto de plantação de árvores – Plantar – no Brasil, com outros menos controvertidos. O problema é que é tão difícil analisar a qualidade dos projetos de compensação de carbono como era analisar a qualidade das hipotecas subprime”.

Derivativos podem virar fonte de financiamento

Certamente eles são recomendados pelas agências de risco como categoria AAA. Seguindo o raciocínio: veio a crise econômica, diminuíram naturalmente as emissões das indústrias, mas as licenças continuaram a ser comercializadas mundo afora. A União Europeia distribuiu gratuitamente 9.999.310 licenças que eles denominam Redução Certificada de Emissões (RCE) na fase II, que abrange o período 2008-2013 e outras 442.283 leiloadas. As emissões verificadas na fase II chegaram a 9.709.851 e o excedente, segundo o Tribunal de Contas da União Europeia é de 1.779.687. Entretanto, o carbono commodity continuou circulando e servindo como garantia para empréstimos e até mesmo para ser negociado no mercado de petróleo.

– A incerteza financeira e acesso reduzido aos empréstimos baratos comercializados são citados como fatores adicionais para o crescimento contínuo do comércio de emissões de certificados. As opções podem proporcionar uma fonte de financiamento quando outros financiamentos não estão disponíveis ou são caros”, registra o texto da FERN.

Mercado totalmente desregulado

A maior parte do comércio de licenças acontece na bolsa europeia, a ECX e são compensados na LCH Clearnet. A partir de 2017 os certificados serão enquadrados como instrumento financeiro em toda a União Europeia. Mas o caminho, iniciado com as primeiras experiências do comércio de emissões em 2005, é longo e cheio de percalços. Acima de tudo: completamente desregulado. O Tribunal de Contas da UE na sua auditoria analisou documentos de 150 empresas de sete países, entre eles França, Alemanha, Itália, Polônia e Reino Unido. São mais de 11 mil instalações com utilização intensiva de energia – como qualifica o TCU – em toda a UE.

– O Regime de Comércio de Licenças de Emissão constitui a política emblemática da UE para combater as alterações climáticas. É o maior sistema mundial de limitação e comércio de emissões de gases estufa. O Tribunal concluiu na auditoria: que a gestão do RCLE UE por parte da Comissão Europeia e dos Estados-Membros não foi adequada em todos os aspectos, tendo sido prejudicada por alguns problemas ao nível da solidez do quadro de proteção da sua integridade e insuficiências significativas na execução da fase II do RCLE UE”.

Continua o relatório da auditoria: “não existe supervisão do mercado de emissões a nível da UE e a cooperação entre os Estados-Membros em termos de regulamentação é insuficiente. O Registro da União que processa os principais dados do RCLE UE tem um perfil de risco elevado devido aos interesses financeiros e a vasta gama de titulares de contas que nelas estão envolvidos. Os procedimentos dos Estados-Membros para controle de abertura de contas RCLE UE, acompanhamento de opções e cooperação com as entidades reguladoras apresentavam insuficiências significativas e a Comissão não consegue acompanhar devidamente as operações devido a questões relacionadas com a proteção de dados.”

Certificadores trabalhavam para todos os lados

Para concluir: “os sistemas de monitoração, comunicação e verificação de emissões não eram suficientemente executados ou harmonizados. As autoridades competentes não controlavam devidamente o trabalho realizado pelos verificadores e efetuaram poucos controles no local ao nível das instalações”.

Verificadores são os certificadores. O TCU europeu descobriu que em alguns casos, como na França e Polônia, eles davam os pareceres sobre o andamento do projeto, mas também assessoravam as indústrias e inclusive faziam inspeções para as autoridades. A raposa cuidava de toda a operação no galinheiro. Mas, isso é o menor dos casos. Na verdade o Registro Único da UE só foi implantado em junho de 2012. Até esta data, as fraudes ocorreram de várias formas, desde o roubo de licenças, invasão dos registros por hackers e no IVA – Imposto sobre o valor acrescentado -, que ganharam o apelido de “fraudes carrossel”.

Fraudes na Europa ultrapassaram 5 bilhões de euros

O interessado na licença, depois de fazer o registro das instalações e qualificar o projeto, abre uma conta junto à autoridade local de cada país. Depois disso, as operações ocorrem livres em toda a União Europeia, ou como define o TCU, operações transfronteiriças. Os prejuízos financeiros para investidores e Estados-Membros, segundo cálculos do TCU passou de cinco bilhões de euros. Na Itália a plataforma de negociação de licenças de emissão suspendeu as suas operações no mercado em 2010 e as operações em bolsas foram permanentemente encerradas em 2014. Em outubro de 2011, a UE lançou uma diretiva, um documento regulatório, contra o abuso de informação privilegiada e a manipulação do mercado. O TCU aponta que além dos riscos e prejuízos abalou a reputação do regime de licenças da Comissão Europeia. Outro detalhe: no registro não constam os preços ou informações financeiras relativas às operações.

Se existe um problema no velho continente, quem sabe as operações da Bolsa Climática de Chicago, uma iniciativa voluntária, porque os Estados Unidos boicotaram o Protocolo de Quioto e nunca aceitaram as suas metas, não serão mais transparentes e éticas? A Chicago Climate Exchange (CCX) foi criada em 2003 por algumas corporações muito conhecidas no mundo: Alcan, BP, Dupont, Shell, Ford, Stora Enso, para atuar no comércio de emissões de gases estufa. Em suma: a humanidade está lascada.

Carta Maior: 28/09/2015.

Najar Tubino. Jornalista e Pesquisador.


Imagem: Vanguardia/Especial

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