Em Destaques, Música

Vamos adotá-lo, mesmo que provisoriamente esse termo ambíguo, musicista. Talvez ao longo do caminho encontremos algum outro mais adequado. Talvez um leitor se disponha a ajudar com uma sugestão qualquer. Também não vou tentar estabelecer com precisão o significado exato do que tenho em mente. E a razão para essa minha opção é possivelmente porque ainda não sei bem o que quero dizer com esse vocábulo.

Começamos do começo. Consigo distinguir duas espécies de indivíduos que lidam com música. Duas categorias distintas, cada uma podendo conter compositores, intérpretes, musicólogos e simples melômanos. O que caracteriza cada um desses dois grupos é a qualidade da sua relação entre o indivíduo e a música e não a natureza da conexão.

Há compositores que são menos musicistas do que certos melômanos. Max Reger é o exemplo extremo de músico não musicista. Mencken é um típico musicista não músico. Musicistas não têm carga genética, têm uma tonalidade. Não possuem uma cidadania, participam de um coral, ou de uma orquestra. Um músico pode ser um político, um estadista. Um musicista nunca passará de um músico da corte.

Furtwängler era um musicista. Mas também era um grande músico. Bernstein é, igualmente, um musicista, embora seja, na minha opinião, um músico sofrível. Como Furtwängler, sua paixão, sua obsessão é a música. Mas como profissional sua relação com a música é distorcida.

Para ser um grande regente é preciso ser, a um tempo, um bom musicista e um competente músico. Mas Bernstein é um caso raro. Muito mais frequentemente encontramos exemplos que são exatamente o oposto, um competente músico e sofrível musicista. O Quarteto Juilliard é composto por músicos, o Végh por musicistas. Na Hungria os violinistas são musicistas, na França são músicos. É claro que tudo isto é muito subjetivo.

Hogwood, que é mais músico que musicista, pode ser desejável para certas obras, enquanto podemos preferir, para outras, Pinnock, musicista, dentre os restauradores do estilo de época. Há certas Sonatas de Beethoven que prefiro com Gieseking, mais músico que musicista, como por exemplo a Waldstein, ou aquelas do Op. 31, enquanto para a 110 ou a 106 escolho Kempff, o mais musicista dos grandes teutônicos. E para as mais alucinadas das Sonatas de Beethoven, como a Appassionata, prefiro Backhaus, o inabalável profissional, talvez para abrandar o fogo.

Mas que o leitor não simplifique. Nem sempre se equilibra o fogo com o gelo. Não é tão simples assim. Às vezes, para controlar o incêndio de uma floresta precisamos de água, às vezes de mais fogo. Nada arde mais intensamente que o Concerto primeiro para piano em Ré Menor, de Brahms e para lidar com esse ardor de nada serve a ternura, o candor e um Perahia, é preciso o fulgor rubro de um Berman, de um Sándor.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 18/06/1989

Ludwig van Beethoven (1770 / 1827)

Piano Sonata nº 23 – Op. 57 – Appassionata

Wilhelm Backhaus

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Imagem: ultradownloads.com.br

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