Em Conjuntura Internacional, Destaques

Na coluna anterior chamei a atenção para a súbita tomada de consciência, pela comunidade internacional, da irrupção em força em terras do Iraque e Síria de um grupo terrorista extremado, com tendências e práticas de genocídio, que passara a conquistar território próprio. Conhecido inicialmente como ISIS (sigla inglesa de Estado Islâmico de Iraque e Síria), em junho de 2014 o grupo simplificaria seu nome para Estado Islâmico (EI), sinalizando com isso a meta de criação de um califado de alcance global. O EI tem profundas raízes históricas e está no momento provocando grande movimentação nos países ocidentais, em particular nos EUA, aonde o Presidente Barack Obama vai sendo forçado a rever a estratégia de desligamento do Oriente Próximo. Nesta e em colunas posteriores tentarei ilustrar tudo isso.

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O pano de fundo geopolítico desses eventos é o desmoronamento do sistema de Estados montado nas terras do velho Império Otomano por Inglaterra e França (acordo Sykes-Picot). Com exceção do Egito, uma entidade coerente com longa identidade histórica, o mapa político desenhado na área por ingleses e franceses, no pós-Primeira Guerra Mundial, fez surgir Estados árabes artificiais, nos quais minorias sunitas mantinham sob controle maiorias xiitas. Por algum tempo, Inglaterra e França mantiveram por sua vez o controle desses Estados, graças a mandatos obtidos da Liga das Nações. Dois propósitos centrais moviam Londres e Paris: confiar a grupos financeiros ocidentais a exploração do petróleo da área e facilitar o projeto sionista da criação de um “Lar Judeu” (Declaração Balfour de 1917). Importante adição a esse sistema de Estados foi a entrada em cena, na década dos 1930, da Arábia Saudita, em aliança firmada com os EUA num encontro do Presidente Franklin Roosevelt com o poderoso líder beduíno Abd  al-Aziz, que assumiria o título de Rei. O novo país era o resultado da fusão da casa tribal dos sauditas com uma Irmandade religiosa, fundada nos idos dos 1740 por Mohamed ibn Wahhab, com propostas muito semelhantes às do IE de hoje. Feito conhecido dessa combinação de forças foi o massacre, em 1801, de milhares de xiitas na cidade iraquiana de Kerbala. O wahhabismo pode ser visto como uma das fontes ideológicas do EI. Um artigo do Financial Times, de agosto de 2014, põe em relevo a contradição entre as posições anti-EI da Arábia Saudita, resultantes de que a Casa de Saud, guardiã das cidades sagradas de Meca e Medina, se vê como herdeira do antigo califado islâmico, e a obra de disseminação do fundamentalismo wahhabita, através da construção por todo o mundo mulçumano de mesquitas e madrassas.. Dados oficiais de Riad registram a construção no exterior, somente sob o falecido Rei Fahd, de 1.350 mesquitas, 202 faculdades, 210 centros islâmicos e mais de duas mil escolas. Tudo de orientação wahhabita.

O domínio anglo-francês sobre o Oriente Próximo começou a ruir na Segunda Guerra Mundial, da qual saíram vitoriosos os EUA e a União Soviética, logo engolfados na rivalidade da Guerra Fria.  O poderoso jorro do petróleo saudita, sob o controle de uma associação de quatro grandes petrolíferas dos EUA (a ARAMCO), garantiu o fortalecimento da economia americana e a ascensão dos EUA a imbatível líder militar do mundo. No Oriente Próximo, os esquemas políticos e econômicos de ingleses e franceses foram alterados para acomodar as necessidades dos EUA. Na Palestina, especificamente, as delongas e os eufemismos da Inglaterra cederam lugar à liderança dos EUA, que trabalhando com o novo líder sionista, Ben Gurion, tornaram realidade o Estado de Israel. Não poderei recapitular as décadas tumultuadas da ação americana por todo o Oriente Próximo. Limitar-me-ei a registrar o ódio crescente dos povos da área aos governos de Washington e a acompanhar, em traços rápidos, o surgimento do EI. Um ponto de partida é a verificação de que os ocidentais não souberam estruturar sociedades civis sob os Estados árabes que criaram. Ao contrário do Irã, da Turquia, ou mesmo da Indonésia, os mulçumanos árabes não se definem como iraquianos, sírios, ou jordanenses, mas como sunitas, xiitas, alauitas, etc., e entrematam-se sem constrangimento. O sentimento de identidade nacional quase só é identificável entre os palestinos em luta contra o ocupante israelense, com o Hamas distinguindo-se por aceitar a idéia do Estado-Nação.

Abu Bakr al-Baghdadi, Líder do Estado Islâmico

Abu Bakr al-Baghdadi, Líder do Estado Islâmico

 Nesse contexto, medrou no terreno o EI como um desdobramento da Al Qaeda. Depois do atentado do 11 de setembro, os EUA esvaziaram a organização terrorista na sua cúpula,  abrindo margem, no entanto, para o fortalecimento de grupos afiliados por todo o mundo mulçumano. Foi o caso da Al Qaeda do Iraque (AQI), inicialmente liderada por Abu Musab al-Zarqawi, morto pelos americanos em 2006. Em 2010, a liderança da AQI foi assumida por Abu Bakr al-Baghdadi, que em 2013 criou o ISIS, num ensaio de fusão da AQI com o Nusra Front (a Al Qaeda da Síria).  O núcleo de dirigentes do EI, em torno de al-Baghdadi, é de velhos companheiros do campo americano de prisioneiros de Bucca, no sul do Iraque, e eles vêm podendo fortalecer a organização com alianças com tribos locais e a ajuda técnica de antigos generais do exército de Saddam Hussein. Recorrem também a uma efetiva política de recrutamento de afiliados, tanto no interior de Iraque e Síria quanto fora. A este último respeito, a publicidade dada às fotos de membros do EI degolando jornalistas ocidentais pôs em foco a problemática da emigração para a Síria de jovens radicalizados, nos seus países de origem, por grupos fundamentalistas islâmicos   tolerados por políticas multiculturalistas. Há cálculos que orçam em 12 mil indivíduos, procedentes de 81 países (3 mil de países ocidentais, na maioria ingleses), os estrangeiros já recrutados pelo EI. Tendem eles a concentrar-se, com mulheres e filhos, na cidade síria de Raqqa, esvaziada com a fuga dos habitantes originais.


Créditos de imagem: redecastorphoto.blogspot.combbc.co.uknews.nationalpost.com

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