Em Destaques, Vida Nacional

Por Vladimir Safatle

Depois de pressões vindas de vários setores da sociedade pelo reconhecimento dos excessos cometidos por ambos os lados, o governo alemão resolveu inaugurar um memorial aos oficiais da Gestapo mortos por militantes comunistas alemães.

“Devemos colocar o problema da ascensão do nazismo em seu contexto. Afinal, havia o medo da ameaça comunista, por pouco uma revolução comunista não eclodiu na Alemanha. Claro que ninguém apoia o nazismo, mas do outro lado não havia apenas santos”, disse a chanceler Angela Merkel na inauguração.

Não, esta não é uma notícia verdadeira. Mas, guardada as devidas proporções, alguns querem nos levar a um raciocínio parecido diante das exigências postas pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade.

Depois de dois anos e meio de trabalho, a CNV mostrou como o país foi governado, durante vinte anos, por governos que implementaram uma política sistemática e consciente de medo, assassinato, tortura, estupro e ocultação de cadáveres, não apenas contra militantes comunistas, mas contra todos os que podiam se apresentar como ameaça à perpetuação do regime. Durante vinte anos, o Brasil foi simplesmente um Estado ilegal governado por bandidos.

Diante disso, o mínimo que se poderia esperar era uma pressão nacional para que as Forças Armadas oferecessem à nação um mea-culpa, como foi feito em países como Argentina e Chile, entre tantos outros. As Forças Armadas brasileiras devem decidir se querem ser uma instituição à altura das exigências de uma sociedade democrática ou um clube de defesa de torturadores, estupradores e assassinos.

Mas, como não poderia deixar de ser, levantam-se vozes para falar sobre “as vítimas do outro lado”. Então, militares aparecem com listas de vítimas das ações de grupos de luta armada (para variar, listas falsas com pessoas ainda vivas), filhos de torturadores escrevem cartas indignadas contra o governo. Pessoas que morreram por defender uma ditadura criminosa ou que são atualmente denunciadas por isso querem agora ser vistas como vítimas. Mas vítimas do quê? Do direito de resistência contra a tirania? Os colaboracionistas franceses mortos pela resistência foram “vítimas”?

Como se não bastasse, há de se lembrar que todos os membros da luta armada que participaram de crimes de sangue NÃO foram anistiados (por favor, leiam novamente, “não foram anistiados”). Eles ficaram na cadeia depois de 1979 e, por isso, pagaram suas penas. Os únicos que não pagaram nada foram os militares.

A Lei de Anistia, como aplicada no Brasil, é uma simples farsa imoral. Como é farsesca a ideia de, agora, dar voz àqueles que passaram à história brasileira eliminando as vozes dos descontentes.

Publicado pela jornal Folha de São Paulo (16/12/2014).

Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).


Créditos de imagem: desconversa.com.br

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