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Revoltada com a humanidade, que além de tachá-la de “bicha” escravizou toda a sua família, a Lumbricus, o maior patrimônio da agricultura mundial, recebeu a Folha para uma entrevista exclusiva. Mais conhecida pelo apelido de minhoca, Lumbricus nega que seja homossexual. “Sou hermafrodita com muito orgulho, o que tem suas vantagens. Vocês humanos não imaginam o que é ter dois orgasmos ao mesmo tempo”, disse.
Lumbricus revelou ainda que é capaz de mover entre 50 a 100 toneladas de terra por ano. “Só perco para a formiga, que vale por 100 mil Camargo Correa”. A seguir, os principais trechos desta entrevista inédita.

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Perdoe-me tê-la avisado com tão pouca antecedência, a senhora sabe como são os jornais. Devo chamá-la pelo seu nome de família, Lumbricus; ou pelo seu nome cristão, Terrestris?
Prefiro que me chamem de dona Minhoca, meu apelido. Não gosto que me chamem Lumbricus, por causa de uns primos distantes que têm o péssimo hábito de andar, pelos intestinos de vertebrados. É uma gente sem muita higiene e de mau gosto. E não gosto de ser com eles confundida. E, como sou antiquada, não gosto que me chamem de você, por isso insisto em dona Minhoca. Mas me explica que história é essa de um jornal de prestígio como a Folha vir até aqui à minha humilde residência para me entrevistar, uma modesta minhoca de canteiro público? Se pelo menos eu habitasse o roseiral da Casa da Dinda e tivesse alguma intimidade com “lady” Rosane. Ou ainda se residisse na jardineira de begônias do balcão da ministra Julieta, da Economia, ou melhor ainda, na varanda ao lado do ex-ministro Romeu, da Justiça.

Não, a senhora não entendeu. Estamos interessados em seus hábitos pessoais e não em mexericos palacianos. Este é um tipo de entrevista que foi concebida por um “primo” nosso da Itália e alcançou grande repercussão com o depoimento da Escherichia coli. Talvez a senhora conheça…
Ora, se conheço, essa sirigaita, tão nojenta quanto a minha prima distante, a lombriga, que também vive nos intestinos do homem e outros mamíferos. Um animalzinho sem dignidade, que virou um instrumento banal da engenharia genética e permite que esse grande parasita explorador transforme a própria natureza íntima, sua constituição genética, para melhor servir essa entidade ignóbil chamada humanidade. E você, senhor repórter, já viu em um microscópio esse bichinho nervoso agitando seus cílios e se locomovendo estabanadamente? Compare com os elegantes e harmoniosos movimentos de uma nobre minhoca na terra.

Pois bem dona Minhoca. Vamos aproveitar essa deixa e me permita uma pequena ousadia. Há um boato correndo por aí que a senhora afinal também não tem um comportamento sexual lá muito convencional…
Pois eu já sabia que você ia chegar lá. É uma calúnia. Eu não sou bicha. Sou hermafrodita. Há uma grande diferença em homossexuais ou bissexuais, de um lado, e hermafroditas, de outro. Orgulho-me de possuir as duas genitálias, a masculina e a feminina. Não sou como os pederastas, que têm que improvisar com o órgão errado para satisfazer a psiquê. É claro que algumas de minhas coleguinhas têm mais prazer de um lado do que de outro. Os nossos psicanalistas dizem que são problemas de infância, relações mal resolvidas com as mães. Mas as minhocas sociólogos — pois também temos os nossos Jaguaribes e Fernandos Henrique— contestam. Afinal, os ovos eclodem longe da mãe. É que eles nunca leram os livros de Melaine Klein. Senão saberiam que no útero já se estabelecem fortes relações entre mãe e filho. Mas o que eu queria dizer é que o hermafroditismo tem suas vantagens. Vocês humanos não imaginam o que é ter dois orgasmos ao mesmo tempo, um em cada extremidade sexual. E, em caso de solidão, não precisamos recorrer à masturbação. Aliás, em quase todo grande sistema mitológico, o deus original é necessariamente hermafrodita. Algumas vezes, como no tantrismo, no hinduísmo e na religião antiga dos celtas, o hermafroditismo divino é explícito. No caso de Jeová, se faz uma abstração para explicar o nascimento de Adão.

Mas dona Minhoca, estamos interessados muito mais nos hábitos que fazem da senhora um animal útil. É verdade que a senhora remove mais terra que todas as empreiteiras que trabalham para o governo Quércia juntas?
Pois eu não digo, os homens são animais egoístas, verdadeiros vermes. Só se interessam pelo que lhes é útil. É bom o que é bom para os homens. São incapazes de se extasiar com a beleza das formas de uma minhoca-californiana e a sua rica coloração avermelhada. Não se maravilham com a espécie australiana (Megascolides australis), que chega a três metros e meio de comprimento e ficam quase da grossura de uma Boa constritor, a jiboia. Tudo isso não interessa aos homens. Só querem saber quão eficientes são para remexer as terras em que vão plantar beterrabas e pepinos. Pois bem, prepare-se’ para uma surpresa. Eu não sou a campeã. Não serei colocada no “Guiness” de recordes, nem tão pouco o Quércia. Em realidade, a grande removedora de terra é a formiga, um inseto, imagine só. E vale por umas 100 mil Camargo Correa. Eu, a minhoca, venho em segundo lugar, e o homem, espécie que inclui o senhor Quércia, ao que parece, vem apenas em terceiro lugar. Alguns dizem que o cupim vem antes do homem. Não é humilhação? Estatísticas feitas pelos americanos, uma subespécie do Homo sapiens, mostrou que, por alqueire, a Minhoca move 50 a 100 toneladas de terra por ano, em média. Mas a questão não é apenas de quantidade.. Devemos também considerar o assunto quanto à qualidade e sob este aspecto eu sou a campeã, pois digiro por dia o meu peso em matéria orgânica que, à partir da superfície, transfiro para camadas mais profundas onde estão as raízes dos vegetais que são úteis aos homens. Além do mais, e ai está a minha grande utilidade, infelizmente — devo confessar – ao digerir a matéria orgânica facilito o trabalho das bactérias ditas secundárias, que vão, por sua vez, processar o húmus que eu produzo e com isso tornar acessível às plantas os micronutrientes contidos na matéria orgânica. Aliás, é bom explicar de uma vez por todas que as plantas obtêm seu material constitutivo, carbono, oxigênio, hidrogênio, diretamente do ar e da água. Da matéria orgânica só extraem os micronutrientes. É por isso que a matéria orgânica só é aproveitável depois de degradada, metabolizada por bactérias. Se eu não existisse, a primeira etapa de degradação teria que ser exercida por um exército de animais e artrópodes de toda espécie, que são muito mais lentos. O húmus que eu produzo e misturo com a terra também é útil devido à sua forma de agregação, que facilita a aeração e, portanto, o trabalho das bactérias secundárias. E essa é a minha desgraça. O homem descobriu que o que eu defeco é bom para produzir os seus alimentos. Por isso nos aprisionam em grandes carneiros e nos fazem digerir o esterco produzido pelo gado. Está aí o nosso destino ingrato. Já não somos muito diferentes da Escherichia coli, enfim, ou do boi e da vaca que nos alimentam. Logo vão começar a fazer cruzamentos entre diferentes espécies para melhorar a produtividade das minhocas. Serão capazes até de usar a engenharia genética. Imagine só que ridículo seria cruzar a encorpada prima rebelus, com sua resplandecente coloração violeta; com a esmirrada castaneus, anã e ainda por cima marrom. Ou a deslumbrante e esverdeada chrorotica com a avermelhada rosca. Vai dar alguma zebra. Que vida de cachorro tem uma minhoca honesta!

Créditos de imagem: ratorama.com.br


*Publicado no jornal Folha de São Paulo de 06/11/1990

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