Em Análises e Reflexões, Destaques

Com frequência um besteirol começa como utopia. E utopias vicejam em situações de frustração aguda. Assim, o complexo de condições adversas no que diz respeito à disponibilidade de energia em futuro não distante, associado à evidente degradação do meio ambiente provocada pelo consumo abusivo de combustíveis fósseis, constitui o cenário propício à eclosão de utopias e seitas no setor de energia.

É sob esse signo que surge com potência inesperada a “onda do hidrogênio”. Aliás, deveríamos dizer “renasce”, pois até no Brasil, na Unicamp para ser preciso, experiências com armazenamento de hidrogênio em metais e com células combustíveis já eram realizadas havia pelo menos um quarto de século. Todavia esse novo movimento surge sob a égide de uma seita de estável convicção, o distributivismo.

O mais eminente e consequente representante desse princípio foi o Mahatma Gandhi, que o ilustrou com uma produção caseira do tecido de suas roupas – que, felizmente, eram diminutas. O exemplo de Gandhi deve ser tomado como um saudável conselho para nossa saúde mental e corporal, mas não como uma política tecnológica e industrial.

Como toda religião vigorosa, o princípio fundamentalista do distributivismo na produção renasceu com vigor há exatamente 30 anos, graças ao brilhante livro de E. E. Schumacher “O negócio é ser pequeno” (“Small is Beautifull“). Nessa mesma esteira surgiu, dez anos depois, a profecia de Alvin Toefler, “A Terceira Onda”, hoje bastante desacreditada, e outras vieram. O que podemos concluir dessas persistentes manifestações do que chamaremos de impulso distributivista primevo é que ocorrem como reação aos excessos da especialização e consequente concentração de atividades produtivas. E, como tal, são certamente bem-vindas, mas não podem se tornar fundamento de uma civilização urbanizada em que a eficiência se torna o princípio da sobrevivência.

No entanto não podemos deixar de reconhecer que esquemas distributivistas variados, líricas tecnologias apropriadas e outras ilusões são humanizadores e inofensivos. É por esse ângulo benevolente que devemos, por exemplo, avaliar a criação de uma Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social e Tecnológica Apropriada no MCT, contanto que não venha ela a absorver parte significativa do orçamento.

Todavia também é com frequência que oportunistas e charlatões se aproveitam dessa inclinação açucarada do espírito empreendedor. É nesta vertente que surgem os apóstolos da chamada economia do hidrogênio. O mito prevê a substituição do petróleo e da eletricidade na economia mundial pelo hidrogênio. E o profeta maior dessa seita nascente é o economista americano Jeremy Rifkin (“A Economia do Hidrogênio”).

Como sempre ocorre nessas ocasiões, a argumentação se vale de uma percepção superficial dos problemas envolvidos e de informações deliberadamente distorcidas. O engodo começa com o subtítulo do livro, a saber, “A criação de uma nova fonte de energia e a redistribuição do poder na Terra”. Em várias oportunidades declama o autor que o hidrogênio, além do mais, é o “elemento mais abundante do universo”. Acontece que o elemento hidrogênio (H) não é a molécula de hidrogênio, H2. Esta última é combustível, mas só se encontra em quantidades ínfimas. O elemento H, este sim é abundante, mas está ligado quase sempre a outros átomos, formando moléculas ou sólidos. O hidrogênio molecular, H2, que é fonte de energia, é praticamente inexistente, e o hidrogênio elementar combinado a outros átomos, abundante, ou já está em outros combustíveis ou não é fonte de energia.

Rifkin, embora nos alerte brevemente (no cap. 8 de seu livro) de que é preciso gerar o hidrogênio molecular, em suas argumentações mais gerais parece esquecer esse fato fundamental. A única vantagem que o hidrogênio poderá vir a ter sobre a eletricidade é um menor custo de armazenamento. Essa possibilidade existe porque, aparentemente, nesse setor ainda há um certo espaço para desenvolvimento e redução de custos em comparação com o que ocorre com a eletricidade. O hidrogênio se torna atraente, então, para uso em cidades de grande densidade populacional, para transporte em que a saúde deve ser privilegiada a qualquer custo e em sistemas em atividades estratégicas nas quais interrupções breves podem ser catastróficas. Todavia, com a atual pletora de tecnologias utilizadas, a poluição resultante não é reduzida, mas apenas transferida para locais menos frequentados. E essas aplicações são muito limitadas.
Rifkin sugere um esquema em que mini usinas em casas, locais de trabalhos etc. produziriam, por efeito fotovoltaico, eletricidade que serviria para eletrólise da água, com o que se teria o hidrogênio combustível. É claro que esse sistema só começaria a ser interessante quando o custo dessa parafernália, somado ao do armazenamento do hidrogênio, se tornasse inferior ao de baterias elétricas para carga de energia equivalente, o que ainda é um sonho.
Mas nada ilustra melhor a precipitação do profeta Rifkin do que sua proposta para evitar outro apagão no Brasil. Diz ele em entrevista à Folha (16/6/ 03): “Se vocês tivessem conversores para transformar o excedente de energia em hidrogênio, não teriam tido problema”.

Um cálculo simples mostra que, se alinhássemos reservatórios cúbicos para hidrogênio com a melhor tecnologia existente, de um metro cúbico cada um, com capacidade total para suprir eletricidade durante um ano de seca no Brasil, seria necessário ir à lua e voltar com essa fileira de reservatórios. Ampliar as hidroelétricas, de acordo com o planejamento que o governo FHC não obedeceu, seria infinitamente mais barato.

O hidrogênio terá, por certo, uma participação na economia da energia do futuro, mas não será a panacéia que certos oportunistas proclamam.

 

Créditos de imagem: slideplayer.com.br


 

*Publicado no jornal Folha de São Paulo de 20 de julho de 2003.

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