Em Destaques, Música

Ainda na semana passada* essa coluna zombou dos nobres sentimentos vindicantes, tão correntes entre melômanos. Não foi contestada a pertinência desse ou daquele impulso justiceiro. Apenas foi colocada em questão a eficácia de tais lamentações. Pois hoje me penitencio. Não sei bem como, acho que procurava um disco de Galuppi, e acabei dando com um de Alessandro Marcello. E lá, perdido entre aqueles Seis Concertos para oboé, violino “concetato” e cordas, encontrei o belíssimo Concerto para oboé, cordas e contínuo que quando ouvi pela primeira vez, há quase quarenta anos, era atribuído a Benedetto Marcello, irmão mais novo de Alessandro.

Posteriormente, musicólogos pretenderam encontrar alguma proximidade de estilo com Pergolesi e se não me falha a memória, por algum tempo, também com Albinoni. Não sei bem por que ultimamente se fixaram definitivamente em Alessandro, apesar das evidências apontadas, ou seja, a referência em um manuscrito da época usado por Bach que o transcrevera para cravo. Talvez porque Alessandro, sendo matemático e filósofo, não se encaixasse bem como melodista exímio. Quem escolheria como presidente um poeta? Não há conclusão mais natural do que aquela que foi dirigida a Paderewsky, primeiro-ministro da Polônia e concertista de sucesso. “Como pianista é um bom político”, dizia-se, “e como político é um bom músico”.

Não obstante, é um concerto magnífico. E se foi Alessandro, Benedetto, Pergolesi ou Albinoni que o compôs, pouco importa. A tristeza advém, entretanto, da observação de que além dos Seis Concertos Duplos denominados La Cetra e desse Concerto para oboé e Doze Sonatas para flauta, pouco ou nada existe gravado, desse generoso diletante. O mesmo acontece com a obra de seu irmão mais novo, Benedetto. Duvido que qualquer pessoa que ouça a magnífica versão do quinquagésimo salmo do Estro Poetico-Armonico da Schola Cantorum Basiliensis com René Jacobs deixe tão cedo de procurar freneticamente, em cada loja de discos, os quarenta e nove restantes.

Seu afã, entretanto, será frustrado pois além de outros sete com Corboz e o Conjunto de Lausanne, já fora de catálogo, e de um outro a reboque de diferentes autores, nada encontrará. Se tiver sorte, talvez venha a descobrir em algum sebo europeu de disco os Doze Concertos a cinco Op. 1, com o inolvidável Angelo Ephrikian e seu I Solisti di Milano.

O fogoso Clemencic e alguns de seus companheiros gravaram quatro Sonatas para flauta. De Alessandro, os Seis Concertos – La Cetra existem com a Camerata de Berna sob Furi, e com I Musici. Clemencic, desse irmão mais velho, gravou também doze Sonatas para flauta e para outros instrumentos, com seu usual ardor e elegância. Benedetto nasceu em Veneza, em 1686, e morreu prematuramente em 1739. Seu irmão mais velho, Alessandro, é quase um absoluto contemporâneo de Bach, tendo nascido um ano antes, em 1684, e morrido no mesmo ano que Bach, em 1750. São, portanto, contemporâneos e concidadãos de Vivaldi. É bom lembrar que também em 1685 nasceram Haendel e Domenico Scarlatti. Na França nasce Rameau em 1683.

Os Marcello eram nobres e economicamente bem-dotados e por isso nunca precisaram de empregos como a maioria de seus contemporâneos. Benedetto foi forçado pelo seu pai, que era violinista amador, a fazer um curso de direito. Não obstante, apesar de considerados diletantes pelos seus contemporâneos, foram musicistas dedicados, tendo um comando técnico admirável na composição. Talvez não tenham, um e outro, a inventividade fogosa de Vivaldi, mas a música de ambos cativa pela clareza e pela genuína dramaticidade. É verdade que muitos poderão ver minha aflição a respeito da escassez de discos dos irmãos Marcello, a mesma atitude romântica que critiquei naqueles que propõem a restauração e glorificação de Sammartini. Pois não deixa de ser em grande parte subjetiva a opção por uns ou por outro.

Todavia, há uma diferença essencial entre a atividade romântica de uns e a minha postura eminentemente egoísta. Alguns buscam justiça para os esquecidos da história. Eu, embora desejasse vindicar esses abandonados, estou mais preocupado comigo mesmo, privado que estou sendo de possíveis experiências estéticas. Esse é o meu sofrimento, mesquinho, interesseiro, e talvez seja o de muitos outros.

*Ver artigo: “Injustiças da História da Música” – https://rogeriocerqueiraleite.com.br/injusticas-da-historia-da-musica/

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica.  São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 10/05/1987.

Alessandro Marcello

Oboe Concerto in D Minor – Mov. 1-2-3/3

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