Em Miscelânea

Por Prof. Boaventura de Sousa Santos

José Serra vai para o governo com dois objetivos: fazer com que o Brasil se alinhe completamente com os EUA, o que significa anular o banco dos BRICS, e abrir a possibilidade de o Brasil entrar na parceria Transpacífico”. É o que diz o português Boaventura de Sousa Santos, que é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick e que atualmente dirige o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordena o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em entrevista a Kalynka Cruz-Stefani, Professora de Comunicação da Universidade Federal do Pará, Doutoranda em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e Maria Fernanda Novo dos Santos Doutoranda em Filosofia pela UNICAMP com estágio na Universidade Paris X, do Movimento Democrático 18 de Março (MD18). O MD18 é composto de brasileiros residentes na França e franceses amigos do Brasil, estudantes de todos os níveis, artistas e jornalistas que se reuniram para sensibilizar a França e a Europa para o golpe de estado em curso no Brasil.

2.

Segundo Boaventura, “estamos envolvidos em uma luta não só nacional, mas internacional, dada a importância do Brasil e, portanto, devemos juntar todos os esforços e ter alguma clarividência sobre o momento difícil que estamos enfrentando. Em primeiro lugar, obviamente, estou absolutamente convicto de que se trata de um governo ilegítimo e de que estamos diante de um golpe parlamentar. O perfil é de um golpe parlamentar relativamente diferente daquele que aconteceu em Honduras e no Paraguai, mas tem, no fundo, o mesmo objetivo que é, sem qualquer alteração constitucional, sem qualquer ditadura militar, interromper realmente o processo democrático. É evidente que o momento é difícil porque nem toda gente pensa como nós, essa é a primeira questão. Por exemplo, neste momento que vos falo, meu coração está pesado, uma colega minha da USP, Flávia Piovesan, que colabora comigo em um projeto internacional, aceitou ser secretária dos Direitos Humanos… Ontem lhe mandei uma mensagem dizendo-lhe que o prestígio dela não deveria de modo nenhum ser posto a serviço de um golpe parlamentar e que eles não merecem a qualidade que ela tem. Estou, neste momento, a assinar uma carta, assinada também pelos advogados populares e outras organizações sociais, me manifestando contra a decisão dela. Flávia diz que, para ela, não é um golpe parlamentar: o impeachment está previsto, etc. Já conhecemos este tipo de argumentação, obviamente que temos muitos argumentos jurídicos contra esta posição dela, mas não deixa de ser perturbador que uma pessoa ligada aos Diretos Humanos venha emprestar a sua dignidade a este governo. Portanto, isto significa que vamos entrar num período difícil, complexo, com alguma divisão dentro do país, isto era a primeira coisa que gostaria de dizer. Certamente, vai ser muito importante que as forças progressistas, que inequivocamente, penso eu, são as que estão a defender a ideia de que houve um golpe parlamentar, mantenham o seu nível de mobilização para neutralizar não só aqueles que desde sempre estiveram a favor do golpe, como aqueles que acabam por legitimar o golpe, como é o caso da Flávia, se vier a se concretizar, o que parece que vai ser o caso. Em segundo lugar, eu penso que é uma situação muito difícil porque algo que raramente se discute no Brasil, aliás que muito pouco se discute no Brasil, é a presença pesada do imperialismo norte-americano. Nós não podemos entender o que se passa no Brasil sem uma ação desestabilizadora norte-americana, inspirada e financiada pelos norte-americanos. Há duas dimensões; obviamente que uma é o financiamento de organizações que surgiram a favor do impeachment e que nós temos informação de que alguns dos maiores conservadores norte-americanos – como por exemplo os irmãos Koch que financiam uma das agendas superconservadoras nos EUA – têm estado a financiar estas organizações. Por outro lado, os EUA têm feito muita força para que os homens, sim homens, de fato, todos brancos, que estão do lado deles assumam o poder o mais rápido possível. Com que objetivo? Fundamentalmente com o objetivo principal de neutralizar o Brasil como um dos protagonistas dos BRICS. Os BRICS são uma ameaça extraordinária para os EUA, porque os EUA são uma economia em dependência que se aguenta fundamentalmente porque detêm importante capital financeiro e, portanto, por aceitação universal do dólar. Os BRICS chegaram exatamente a criar um banco que é uma alternativa ao Banco Mundial e, portanto, as trocas entre eles podem ou não ocorrer em dólar. Isto significa um ataque extraordinário ao dólar. Portanto, os EUA têm vindo desde algum tempo produzir uma política de neutralizar todos os países que estão nos BRICS. Começaram pela Rússia. Mas, na Rússia, o processo democrático é um pouco complexo, aí o modo de neutralizar a Rússia foi baixar o preço do petróleo. De uma semana para outra baixou para menos da metade do preço. Em segundo lugar, no caso do Brasil, como há uma democracia, uma democracia viva, aproveitaram obviamente das contradições do processo democrático; sabemos que as democracias representativas defendem-se muito mal dos antidemocratas. Aproveitaram-se disso para criar uma desestabilização muito forte. Aliás, basta ver quem está neste novo governo para ver de forma clara como houve interferência dos EUA no sentido de realinhar o Brasil pela política americana. O maior exemplo é o José Serra, que é o homem dos EUA que vai para o governo com dois objetivos: fazer com que o Brasil se alinhe completamente com os EUA, o que significa anular o banco dos BRICS, e abrir a possibilidade de o Brasil entrar na parceria Transpacífico. Logo, contra inimigos deste tipo, é muito difícil lutar.

Brasil247: 03/06/2016.

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Tradução de Alex Solnik (Jornalista).

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