Em Análises e Reflexões, Destaques

Foram dois inquestionáveis gênios que, embora contemporâneos, nunca se entenderam, para dizer o menos. Historiadores da arte atribuem esta aversão mútua à inveja, um do outro e vice-versa. Pois é verdade que emitiram com frequência críticas ao concorrente, bastante irracionais. Creio, não obstante, que a razão do conflito era de natureza conceitual. Michelangelo era um escultor que também pintava e Da Vinci foi um pintor que fez, além de pintar, de tudo um pouco. Em resposta a uma pergunta sobre o seu método Michelangelo dizia que a obra já estava lá dentro do mármore. O que ele fazia era só “tirar” a escultura do interior da pedra, ou melhor, remover o material excedente. Enquanto isso a pintura se faz por adição, não só das cores, das tintas, mas também das ideias. Se por um lado Da Vinci sintetiza, por outro Michelangelo analisa. Enquanto Da Vinci coerentemente com sua aptidão para síntese, era também um inventor, Michelangelo foi também um arquiteto, que via este talento como uma extensão da escultura.

Durante muito tempo pensou-se, com alguma razão, que pequenas empresas eram mais aptas para inovar. Grandes organizações exigem administração e regras, ou seja, burocracia, o que reduz necessariamente a agilidade de ações e decisões.

Dois dos mais surpreendentes fenômenos do setor de inovação servirão de base para nossas reflexões, tais sejam, os Laboratórios do Sistema Bell e o Vale do Silício, ambos nos EUA. Em meados do século XX os grandes laboratórios industriais americanos assumiram a liderança da inovação no Globo. O mais bem-sucedido deles, foi aquele mantido pela “AT&T”, detentora de verdadeiro monopólio das telecomunicações nos EUA e Canadá e nas comunicações intercontinentais. Seus laboratórios se estendiam por vários locais. Em começos da década de 60, 20.000 funcionários se localizavam naquele de Murray Hill, o maior dos 4 ou 5 laboratórios de então, com 3.500 doutores, alguns administradores, muitos técnicos e engenheiros. Distribuíam-se em dois grandes blocos de pesquisadores. No primeiro, menos numeroso, uns 20%, os membros se dedicavam a “desvendar” a natureza. Faziam pesquisas “puras”. Eram da linhagem de Michelangelo. O segundo grupo era composto por aqueles que engendravam novos materiais e dispositivos, como Da Vinci. Punham juntos coisas desvendadas pelos primeiros. Neste último setor fazia-se desenvolvimento ou pesquisa aplicada.

O sucesso desse imenso laboratório se deveu à sua dimensão, à sua concentração de pesquisadores em um único espaço (como acontecera também com o projeto Manhattan, da bomba nuclear). Então, como se explica o sucesso do Vale do Silício, onde milhares de pequenas empresas competiam virulentamente entre si e, portanto, não tiveram seus pesquisadores, seus engenheiros, como aqueles do Bell, a oportunidade de trocar ideias informalmente com companheiros da mesma empresa. Se a tal massa crítica fosse mesmo necessária, então por que teriam tanto sucesso essas diminutas empresas (10.000 ao todo)? A razão está em um fenômeno que fazia com que se aglomerassem nesse espaço específico. Por que precisaria a poderosa Siemens da Alemanha e tantas outras organizações europeias e japonesas lá, no Vale do Silício, inserir suas pequenas empresas subsidiárias senão para usufruir, ou melhor, compartilhar de um certo meio ambiente? Um dos dados essenciais para entendermos o sucesso do Vale do Silício é o reduzidíssimo “tempo médio de residência” de executivos dessas empresas, que chegou a ser de seis meses. “Espionagem industrial”, porém branca, consentida, ocorria de várias formas, as mais imaginativas, chegava-se a enviar a secretária para namorar um executivo de empresa concorrente. O Vale do Silício funcionava, pois por meio de trocas informais de informações como um imenso cérebro, tanto quanto o faziam os cientistas da Bell.

Recentemente o “The Economist”, atendendo sua vocação neoliberal, investiu contra iniciativas de governos de realização de pesquisas por conta própria. Há instituições governamentais no setor de Ciência e Tecnologia tão eficientes quanto as privadas. A polêmica entre a economista Mazzucato, que contesta a supremacia da empresa privada sobre a pública para a inovação, e a revista “The Economist” é supérflua, pois não percebe as condições essenciais para o sucesso no setor de pesquisas.

É bom não esquecer que se as pequenas e médias empresas do Vale do Silício concentram “engendradores” (Da Vincis) como também acontecia com outros fenômenos similares, tais como a rota 128 de arredores de Boston e o tecnopolo de Grenoble na França. Essa ocorrência só se dá, entretanto, em terreno fértil, como o entorno da Universidade de Stanford no primeiro caso, a proximidade do MIT e da Universidade de Harvard no segundo, e como também é o caso de Grenoble com a sua Universidade e os inúmeros Institutos públicos de pesquisas de seus vizinhos. A conclusão é, pois, que não bastam engendradores. É necessário que outras instituições como Universidades e Instituições de Pesquisa forneçam o material básico para alimentar os engendradores (Da Vincis).

Foi por perceber a necessidade dessas condições, ou seja, a indispensabilidade de um espaço fértil em ciência para a implantação de uma indústria tecnologicamente intensiva que se propôs e se instituiu em torno da Universidade de Campinas o primeiro tecnopolo planejado do Planeta, já em meados da década de 70. Os acontecimentos anteriores eram espontâneos. Todavia, o exemplo de Campinas e o sucesso de projetos similares bem-sucedidos no exterior serviu para o surgimento de vários parques tecnológicos no Brasil, sempre no entorno de Universidades ou centros de pesquisas. Essa irrefutável realidade mostra que não há inovação sem uma base científica fecunda.

O problema nas instituições públicas, que é dominante no Brasil, é a estabilidade prematura do funcionário, uma perversão que é abrangente, ou melhor, que não é peculiar às instituições de pesquisa. Para este e outros problemas relacionados a instituições públicas encontraram-se soluções em vários países. O que é, entretanto, incontornável é o imperativo de uma massa crítica de cérebros, de neurônios e de uma gestão que perceba a distinção da natureza dissimular entre as vocações dominantes em cada pesquisador, pois há inclinações naturais irremovíveis. Uns nasceram para desvendar, outros para engendrar, embora nem sempre eles próprios percebam essa dicotomia.

Recentemente, a percepção de que inovação é quase sempre determinante para o desenvolvimento econômico de uma nação e mesmo para a competitividade entre empreendimentos específicos comerciais e industriais têm produzido pressões para que Universidades e Instituições de Pesquisas se dediquem crescentemente à busca de inovações. Em primeiro lugar, a conversão de grupos de pesquisas básicos em ferramentas da produção de inovação, se levada a extremos, eliminaria a produção de conhecimento fundamental que é a base sobre a qual se lastreia a pesquisa aplicada e consequentemente a geração de inovação. Em segundo lugar seria violentar a vocação própria do pesquisador de ciência básica e aproveita-lo, com frequência, com baixa eficiência.

O pior, entretanto, dessa tendência, se perniciosa em si, é que por falta de experiência ou de inteligência de seus gerentes, as instituições públicas no Brasil elegeram um parâmetro de medida absolutamente inadequado para avaliar o sucesso de pesquisadores e instituições, tal seja o número de patentes.

A patente só tem existência real quando resulta em inovação, que tenha resultados financeiros. O pagamento de “royalties”, quando a patente é cedida a terceiros, seria uma boa medida, todavia, muitas patentes de sucesso servem apenas para impedir um competidor por algum tempo de ocupar uma certa parcela de mercado e outros para uso próprio. E, portanto, não se pagam royalties nestes casos. Outras vezes serve apenas para contratos entre companhias que não querem competir.

O registro de patente avalia apenas uma aparente originalidade e não o eventual futuro financeiro de uma inovação. Ou seja, o registro, ou pior ainda, a deposição de uma patente é inteiramente irrelevante. Como consequência o que se observa com frequência hoje no Brasil, é uma perversão que valoriza algo que não pode ser medido e sacrifica talentos para a pesquisa.

O Brasil deve prosseguir na busca de inovações, mas deve repensar os métodos atualmente utilizados para atingir tais metas, pois os atuais talvez estejam sendo prejudiciais aos próprios propósitos.

Ciência&Cultura [http://bit.ly/2iJvb4S ]: Vol.68 no.3 S. Paulo July/Sept. 2016.

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