Em Destaques, Escrita'10

Ele cuida do avô, na Austrália. Ela, mora no Hemisfério Sul. Ambos vivem no futuro, daqui a meio século. Eles são os personagens de intrigante conto escrito por Beatriz Bracher. São duas crianças, afetivamente envolvidas, que nunca estiveram juntas e que se relacionam apenas virtualmente. O conto é um longo diálogo desenvolvido em linguagem característica da juventude ‘linkada‘ às redes sociais, com aquela ortografia típica dos bilhetes eletrônicos. Os papos entre os protagonistas não são nada infantis, focados em temas da intimidade (ao mesmo tempo em que vão sendo desenhados os contextos em que vivem estes infantes do futuro). “Michel e Flora” é o título do conto, que – junto com outros oito textos – compõe o livro “Garimpo” (Editora 34, 2013).[i]

No livro, Beatriz Bracher adota formas diferenciadas de escrita, explorando variadas possibilidades de abordagem literária. Um exemplo é “Um sapo e um violino”, conto com dois protagonistas (narrado em primeira pessoa, no qual duas trajetórias de vida seguem paralelas até desembocar numa estória de amor) que foi escrito à duas mãos, com Noemi Jaffe. Cada escritora nos informa Beatriz, “escreveu um personagem, uma em resposta ao outro, sem saber o que a outra escreveria depois”.

A originalidade do conto “Para um filme de amor” é ser um rascunho de roteiro de cinema, com notas à margem do texto apontando as dúvidas e as alternativas do ‘autor’, para dar seguimento à trama da ficção.

E se ‘Gregor Samsa’ (o personagem de ‘A metamorfose’, de Franz Kafka) “ao despertar de sonhos inquietantes” havia sido transformado em inseto, no conto “Um pardalito” a protagonista sofre grande desilusão amorosa – o seu amado encerra o affair através de um e-mail… – e somatiza a rejeição dramaticamente, vendo-se como um monstro disforme a partir da leitura do texto do fatídico correio eletrônico enviado pelo ex-parceiro. A base deste texto é um fato real; diz a autora: o conto foi “inspirado na obra da artista plástica Sophie Calle – ‘Cuide de você’ – feita a partir de mensagem, real, em que seu namorado terminava com o namoro”.

Em “O que não existe”, acompanhamos a longa caminhada (e os sofridos pensamentos) de ‘Helena’, personagem que atravessa difícil crise existencial: após colapso nervoso – durante o qual deletou o arquivo eletrônico com a tese acadêmica que escrevia – ela, uma urbanoide, refugiou-se no campo e vive momento turbulento com ‘Emilio’, seu companheiro.

“O pensamento de Rubens” e “Durante a imensidão, do amanhecer até depois do cair do sol” são os menores textos do livro. A primeira estória desenrola-se em cenário fechado, ao longo da noite: ‘Rubens’ restaura jóias, prefere o trabalho noturno em casa e, sob o silêncio ambiente, divaga sobre temas soturnos, marcantes em sua vida familiar. O enredo do outro conto é desenvolvido em cena aberta: personagens sem nome – ‘condutor de caravanas’, ‘velho escriba’, etc – atravessam o deserto, profetizam tragédias, cruzam viajantes, enfrentam dramas, numa ambiência de aventura oriental.

Outro conto é “Suli”. Juntamente com “O pensamento de Rubens”, é parte de ‘um romance que escrevo ininterruptamente desde 2007’, diz a autora. Nele, conhecemos a família ‘Meltaya’, que mora numa pequena vila no Líbano. ‘Suli’ é casada com ‘Meldor Meltaya’, que foi enviado ao Brasil e não quis voltar ao vilarejo libanês; a tensão dramática do conto é fornecida pelo truculento patriarca dos ‘Meltaya’, que veta a ida de ‘Suli’ ao Brasil.

O derradeiro conto é o texto mais longo do livro. Vale reproduzir o comentário da professora Giovanna Dealtry (PUC-Rio): “[…]. ‘Garimpo’, conto que empresta seu nome ao volume, inicia-se com uma ‘Nota introdutória’ assinada por ‘Rita Mendes’, provável parente de ‘Adriana Mendes’. De antemão, somos informados da morte [da escritora ‘Adriana’] em um desastre aéreo quando voltava de uma estadia na Amazônia. O que leremos a seguir, em forma de um ‘diário de viagem’ narra a passagem de ‘Adriana’ pelo sul do Pará, onde seu irmão tem um garimpo. Um diário escrito para não ser lido por outros: ‘As características da escrita original foram mantidas em estado bruto, inclusive com os erros, pois são parte da natureza de anotações que ‘Adriana’ escreveu sem a intenção de publicar’. Ao transformar-se no último registro em vida da escritora, o diário é capaz de ganhar variações que vão desde o registro íntimo até o caráter quase antropológico de um diário de campo, em especial, nas ‘entradas’ em que registra admiravelmente o trabalho no garimpo e os trabalhadores. […]. Este é um diário sem passado ou futuro. É um diário onde só o presente existe. A vida, naquele recorte do país, corresponde ao ‘estado bruto’  determinado pelo ritmo das máquinas e dos homens a extrair ouro enquanto a floresta é destruída”.

Finalizando, a escritora Noemi Jaffe, numa visão panorâmica do livro,  assim o definiu: “Há algo estranhamente comum entre um condutor de caravanas no deserto, um libanês que foge para o Brasil, um neto adolescente que cuida do avô na Austrália e um paulista que escolhe viver num garimpo distante, no meio da Amazônia. São personagens ao mesmo tempo ancestrais e estrangeiros, distantes no espaço e no tempo, perdidos do mundo em seus conformes. É assim também a literatura de Beatriz Bracher: deslocada na linguagem e em seu objeto. Sempre um pouco mais para lá ou para cá, o centro não é seu lugar e o leitor precisará se haver com contos que o põem, sem disfarces, de frente consigo mesmo”. (Noemi Jaffe, ‘Autoras em papo literário’ – Por  Valor Econômico, 11/10/2013).

[i]Para ler o trecho inicial deste conto, acessar o link: http://veja.abril.com.br/blog/imperdivel/livros/garimpo/.

Créditos de imagem: folha.uol.com.br

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