Em Destaques, Música

O intérprete, o melômano e até o compositor já não estranham, se acostumaram a um fato extravagante, insólito, para dizer o menos. Chamamos “concerto” uma composição instrumental em que é explorado o contraste entre um ou poucos instrumentos e o conjunto global dos demais que compõem a orquestra. Imaginemos apenas se, um dia, assistindo a uma peça de Shakespeare, subitamente um dos atores assumisse o centro do palco, calando os demais, passasse a recitar um poema de sua própria autoria ou de outro poeta qualquer. O que não faríamos? Vaias, injúrias variadas e ovos, se disponíveis, seriam lançados contra o iconoclasta que ousou violar a obra sacrossanta do gênio de Stratford-upon-Avon. Não obstante é exatamente isso que ocorre em quase toda apresentação musical em que esteja incluído um concerto. Esse enxerto ilegítimo se chama “cadenza“. Certos solistas compõem a própria, outros utilizam “cadenzas” de terceiros ou do compositor do concerto apresentado. Quando examinada fora de seu contexto histórico, essa prática parece uma estultícia injustificável.

 Todavia, como se argumentará abaixo, foi ela um dos principais fatores responsáveis pela evolução e diversidade da música ocidental, desde seus primórdios. Já em começos do século 9º, imediatamente depois que, por imposição de Carlos Magno, o próprio da missa se homogeneíza e a rígida disciplina imposta pela aliança Estado-Igreja estabiliza texto e melodia do canto gregoriano, surgem as primeiras manifestações dos impulsos inovadores dos cantores. Comentaristas da época, embora desarmados de qualquer escrita musical, atestam esse fenômeno.

 O melisma começa como improvisação do cantor. Seu impulso criativo não será contido pelos rígidos cânones da tradição oral que disciplina a prática do cantochão. Começa como uma breve modulação sobre uma nota que acompanha uma sílaba. Aos poucos se estende para sílabas vizinhas até que se constitui em um fragmento melódico independente, paralelo à “vox principalis“, o tenor gregoriano original. O compositor, anônimo, solitário ou coletivo, seja lá quem for se apodera então da inovação e oficializa a forma primitiva de polifonia, o órgano (“organum“), que nasce, portanto da imaginação do intérprete tanto quanto do trabalho do compositor. Novamente, inconformado com as limitações decorrendo da forma restrita à uma segunda voz em paralelo, o intérprete busca, já no século 10º, outras soluções, e dessa inquietação surge o movimento contrário que novamente é apropriado pelo compositor sob a forma do descanto.

 Em seguida, já no século 11, com o advento de formas primitivas de escrita musical (neumas), surgem os primeiros ensaios de polifonia livre (floreada) e simultaneamente os primeiros tropos, prelúdios breves introdutórios a certas partes da missa, tanto do próprio quanto do ordinário, que a essa época já estava estabilizado. Novamente um processo se inicia como movimento liberalizador, inovador, do intérprete e é subsequentemente apropriado pelo “compositor”. É claro que intérprete e compositor não são necessariamente pessoas distintas. Todavia, mesmo quando são a mesma, haverá dois momentos distintos, duas posturas. Já no século seguinte, trovadores são poetas-compositores e intérpretes. Mas naquele momento em que cantam não são compositores, embora improvisem, com frequência, enquanto cantam.

 

Círculo vicioso

Vemos que um padrão começa a se desenhar com alguma insistência. O intérprete, sem as mesmas responsabilidades decorrentes da busca pela perenidade da obra, pode inovar despreocupadamente. Em seguida, se a inovação é vantajosa, ela será incorporada pelo compositor.

Todavia, quando se torna “oficial”, passa a ser um obstáculo para a expressão inovadora e, portanto, precisa ser violada, o que exige experimentação. E o intérprete, mais que o compositor, dispõe da necessária liberdade, pois sua atuação não é registrada. Assim se fecha o círculo vicioso. Essa é uma característica peculiar à música, embora possa também ocorrer no teatro, em que os atores e diretores teriam a mesma liberdade que o intérprete na música.
Bem, voltemos à alta Idade Média, quando nasce essa nova e tão bem-sucedida forma musical, o moteto, que vai sobreviver até praticamente o eclipse do barroco. Nasce como um tropo litúrgico, pouco depois do início do século 13. Em seu nascedouro, o moteto era uma composição em que a voz principal, o tenor gregoriano, era estruturada em segmentos de configurações rítmicas preestabelecidas, sobre os quais se adicionavam uma ou mais vozes, com textos, com tempos e melodias mais rápidos. O fato de, com frequência, uma segunda ou terceira voz adicionadas serem extraídas de uma canção popular e inclusive cantada no vernáculo, ou seja, em francês, enquanto a voz principal o era em latim, decorre do caráter eminentemente improvisatório das vozes adicionadas.

As notações para tempo, ritmo e dinâmica que surgem a partir do final do século 13 e começo do 14 também têm como uma de suas finalidades disciplinar a participação do intérprete. Todavia esse vai novamente encontrar seu espaço na tradição da improvisação vocal e instrumental que surge com a eclosão do Renascimento e atinge seu apogeu no barroco. E novamente vemos continuamente, nesse período mesmo, o compositor voltar a se apropriar do espaço do intérprete compondo “improvisações”, por mais que essa afirmação nos pareça incongruente. Foi então que surgiu a “cadenza“, mais uma fórmula concebida para romper com o jogo imposto pelo compositor e que por este será em seguida conquistada.

Hoje a crítica musical, sempre reacionária em nome de uma falsa autenticidade, condena o intérprete e exalta o “executante”, ou seja, aquele que não se envolve e nada agrega de si próprio à obra que apresenta ao público. “A música deve ser tocada como está escrita”, dizem, embora não ignorem que, por mais que se aperfeiçoe a notação musical, havendo intérpretes, haverá improvisação e, consequentemente, renovação, invenção. Somente a música eletrônica dispensa o intérprete e talvez seja por isso que tenha sido condenada precocemente à obsolescência.

Tomás Luis de Victoria

 Officium Hebdomadae Sanctae – VIII – O Vos Omnes – Motete a 4

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Créditos de imagem: musicaantigua.com


*Publicado no jornal Folha de São Paulo de 16 de novembro de 2003

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