Em Análises e Reflexões, Destaques

No ano de 1564, o Rei Carlos IX da França adotou oficialmente o calendário gregoriano, passando o Ano Novo para o dia 1º de janeiro. Porém muitos franceses resistiram à mudança e continuaram seguindo o calendário antigo pelo qual os festejos do fim do ano, que duravam uma semana, começavam no dia 25 de março e iam até dia 1º. de abril. Tiveram então início brincadeiras ridicularizando os resilientes, que eram tratados por bobos por seguirem algo que não era verdade.

Passando do folclore para a realidade, no caso, a brasileira: é bobo (alegoricamente falando) quem hoje em dia acredita que não houve um golpe inconstitucional em 1º. de abril de 1964; mais bobo ainda é quem se auto ilude de que o golpe não implantou uma ditadura cívico-militar; bobo de todos os bobos é aquele que acredita que os anos de chumbo não constituíram nada além de uma ‘ditabranda’; são totalmente desprovidos de senso comum os que apregoam que a ditadura durou menos de duas décadas.

O golpe consumado em 1º. de abril de 1964, contou com a colaboração e o ostensivo apoio do governo dos EUA, através da Operação Brother Sam – visando prevenir a eventualidade dos legalistas oporem resistência ao putsch em gestação. Ele foi ensaiado nas ruas, através das “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”; insuflado pela imprensa insidiosa que criou através de manchetes, editoriais e um sem número de matérias, um ambiente midiático de caos e pânico predispondo e conclamando à coesão das “forças vivas da Nação” e à intervenção das Forças Armadas para “salvar a Pátria ameaçada” pelo “perigo vermelho”. Foi também articulado com a participação de conhecidos conspiradores da sociedade civil, entre governadores e empresários anti-Jango, e, instituições subvencionadas com dinheiro norte-americano, como o IPES e o IBAD. Operacionalizada a partir dos quartéis, a derrubada de Jango foi, finalmente, consumada e sacramentada pelo Legislativo – contrariando o art. 85 da Constituição Federal então vigente, que determinava que “o Presidente e o Vice-Presidente da República não poderão ausentar-se do País sem permissão do Congresso Nacional sob pena de perda do cargo”, na madrugada do dia 2 de abril de 1964, o então presidente do Congresso Nacional, Auro Soares de Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República, quando sabidamente, o Presidente João Goulart se encontrava em território nacional (em Porto Alegre/Rio Grande do Sul) e no pleno exercício das suas funções. Prova disso é que num esforço de reparar o grave erro de então, o Congresso Nacional no dia 21/11/2013, numa decisão histórica, declarou nula a sessão que afastou Jango da presidência.

Convencionalmente designada ditadura militar, devido, seguramente, à preponderância da tutela militar sobre o conjunto da sociedade, o regime instaurado em 1964 decorre de uma articulação simbiótica entre a os interventores militares e colaboradores civis.  Estes últimos além de desempenharem papel crucial na configuração jurídico-legal, político-social e econômica do regime, ocuparam cargos determinantes nas diferentes esferas do poder de estado, na condição de políticos, intelectuais, economistas, reitores, diplomatas, proprietários e profissionais dos meios de comunicação e outros e, no apoio financeiro e logístico – por parte de empresários e doadores – à realização de ações repressivas – no auge dos anos de chumbo.

Possivelmente sem o apoio efetivo e a participação decisiva dessa retaguarda civil, o fôlego e a sobrevivência da ditadura não teriam sido tão longos e tão bem cimentados. Essa é uma característica notória da ditadura, que, aliás, tem inclusive raízes históricas no nosso país. Prevaleceu um processo de tentativa de legalização do autoritarismo, através dos atos institucionais, pelo corpo normativo que amparava o uso arbitrário da força. Esses fatos ensejaram a seguinte constatação de Paulo Abraão, (revista Brasileiros, 17/01/2014): “Abrir esse baú de histórias (a esfera de colaboração civil com a ditadura militar) é reconhecer que nenhuma ditadura se sustenta por 21 anos pela simples força das armas. Houve uma adesão social à ditadura, em diferentes segmentos. No meio empresarial, no meio jornalístico, no meio cultural.”

Há uma corrente de opinião da qual fazem parte donos de jornal, politólogos e historiadores com forte suporte em órgãos da comunicação social que advogam a tese de que a ditadura brasileira não foi cruel e sanguinária como suas congêneres no continente. Certamente que se espelham na ocultação para o grande público de práticas frequentes de violação dos direitos humanos ocorridas no período e, também pela falta da existência de fatos ‘auspiciosos’ que se ocorridos poderiam ter contribuído para tornar mais evidente a natureza soturna do regime, como no exemplo da fracassada. “Operação Jacarta” em que comandos militares da ativa planejavam reeditar no Brasil o genocídio praticado pela ditadura do general Suharto na Indonésia, onde se estima que 600 mil opositores ao governo tenham sido sumariamente fuzilados.

Da mesma maneira que não se pode medir a intensidade das dores, tampouco se pode dimensionar uma ditadura pela quantidade de corpos inertes que ela foi capaz de produzir durante a sua vigência. Tanto mais que além das mortes nas masmorras através de tortura física e psicológica, do fuzilamento sumário e do aniquilamento por outros meios, ela se valeu também e à exaustão de instrumentos de coerção econômica, legal e outros visando privar de direitos essenciais, de emprego, de condições de existencia minimum aos seus perseguidos. E a releitura dos exatos 21 anos de ditadura brasileira nos coloca diante de um quadro dramático do recurso a esses métodos para amedrontar, cercear e, no limite, silenciar e empurrar para o exílio as oposições e suas lideranças ou ativistas mais ‘incômodos’.

A aplicação desses métodos abomináveis se quisermos ser fiéis à história dos anos de chumbo, começa já em 1964, quando militares foram expulsos e perseguidos, alguns inclusive mortos, civis foram presos, torturados e assassinados fora e dentro dos centros de tortura, funcionários públicos e políticos cassados e muito mais que isso. Os depoimentos que atualmente se sucedem na Comissão da Verdade, tanto na Nacional como nas estaduais e em outros níveis institucionais mostram um quadro espantoso de uma realidade que até aqui vinha sendo sonegada à opinião pública brasileira e internacional. Fatos que mostram de maneira insofismável que em termos de atrocidades a ditadura brasileira não está nem à frente nem atrás, não deixa nada a dever às suas similares pelo mundo. Nesse sentido ela é perfeitamente comparável à ditadura dos “coronéis” (Grécia), à de Salazar/Caetano (Portugal), às da América do Sul (Peru, Bolívia, Chile, Argentina e Uruguai) e da América Central (Guatemala, Honduras, El Salvador e Nicarágua), e mesmo as de África (a de Mobutu Sese Seko, no Congo/Kinshasa) e Ásia (ditadura de Ngo Dinh Diem, no Vietnam do Sul), para mencionar os casos mais notórios.

Embora tenha passado por distintas etapas, a ditadura implantada no Brasil em 1964, em termos cronológicos se estendeu e se encerrou no  mandato do general João Figueiredo, em 1985. Ao longo desse período os detentores do poder de Estado comandaram com manu militari os destinos do país. Entretanto o encerramento do ciclo militar não significou necessária e automaticamente o fim dos resultados produzidos pela ditadura, e dos seus efeitos, consequências e das sequelas desse período que se prolongam na sociedade brasileira até nossos dias. E, vários exemplos ilustram isso. Por exemplo, é clara a contradição entre a Lei de Anistia vigente e o Direito Internacional especialmente no que se refere à Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. O mesmo se aplica à superveniência de entulhos autoritários remanescentes em diferentes setores da vida nacional através de legislações, instituições, princípios e valores, reforçados sistematicamente pela linha editorial de meios de comunicação brasileiros, aparentemente saudosos daqueles tempos sinistros.

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