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Por volta do ano de 1320, Philippe de Vitry escreveu um tratado teórico de música intitulado Ars Nova, que propunha uma série de inovações revolucionárias. Embora essa transição possa ser descrita em termos técnicos extremamente objetivos, como seja, a adição de acordes de terça além de consonâncias completas e das quintas e oitavas tradicionais da nota acentuada (tônica), a mudança pode ser melhor descrita como uma deliberada adoção de melodias brandas em substituição ao estilo brusco e relativamente vigoroso que caracterizava o período precedente que, por contraste, veio a ser denominado Ars Antiqua. Convém deixar claro que o estilo antigo teve uma recuperação em começos do século XV, voltando a prevalecer a Ars Nova apenas ao final desse século, com Dufay e Josquin. Todavia, de maneira geral podemos afirmar que, se alguma concepção clara dominou a música do século XVI, não foi outra senão a Ars Nova.

O Mulo Fauvel, por efeito do casamento com a Vaidade Glorificada, produz uma multiplicidade de Fauveaus (falsos bezerros), que contamina todo o universo. Um pouco de história da burocracia e da prepotência.

Esse é o libretto da mais famosa obra de crítica social do século XIII, uma espécie de opereta escrita por três intelectuais, dentre eles de Vitry, com a finalidade de fustigar a corte e a máquina estatal. Como se vê, nada mudou em quase sete séculos.

Cansado de sua pequena cocheira no estábulo, o Mulo se muda para os salões do palácio, onde é acidentalmente alçado pela Senhora Fortuna à condição de Senhor do Castelo. Todos, bispos, generais, príncipes, ministros, empresários e até o papa, passam a bajulá-lo, e tudo fazem para se equipararem ao Mulo.

Há duas excitantes versões em discos do Roman de Fauvel. A primeira com Clemencic e seu Consort é altamente teatral e imaginativa. Entretanto, prefiro a gravação do Studio der frühen Musik, sob a direção de Binkley, mais sóbria, mas de perfeição formal incomparável. O leitor não pode deixar de adquirir uma dessas duas interpretações, senão pelo seu significado para a música Medieval, pelo menos pelo esclarecimento que nos traz sobre a atual situação política nacional.

É com essa obra que se inicia a Ars Nova de Vitry. Entretanto, seria Guillaume de Machaut, seu contemporâneo, quem viria a ser reconhecido mais tarde como o mais representativo dos compositores pertencentes ao período.

Guillaume de Machaut

Guillaume de Machaut

Se o leitor possui algum disco com músicas de Perotinus, Leoninus ou outro compositor da Escola de Notre Dame, poderá melhor compreender a severa transição imposta à música litúrgica e profana pelos preceitos da Ars Nova, se se dispuser a uma comparação com as canções de Guillaume de Machaut. A plasticidade melódica alcançada pela liberação dos cânones típicos da Escola de Notre Dame é imediatamente perceptível.

Recomendo em particular essa maravilhosa coletânea de canções de Guillaume de Machaut em dois volumes magistralmente gravados pelo Studio der frühen Musik, sob a direção de Binkley. É preciso lembrar que esse surpreendente compositor, além de ter sido o maior de sua época, foi também um grande poeta. Basta dizer que sendo padre, aos sessenta anos se apaixonou por uma moça de vinte. É claro que essa condição não basta para garantir a qualidade da poesia, mas é, sem sombra de dúvida, um bom começo. “Toutes mes choses ont étés faites de votre sentiment, et pour vous especialement”, afirma o sexagenário enlouquecido de amor à sua donzela. E Machaut foi para a França o que Chaucer foi para a Inglaterra, e Bocaccio ou Petrarca para a Itália.

Foi Machaut também quem escreveu a primeira missa completa independentemente de outros músicos. Aquela que veio a ser chamada de Missa de Notre Dame é o mais impressionante exemplo de polifonia da Idade Média, e talvez o mais ousado uso desse recurso em música litúrgica até então. Dentre as muitas gravações existentes, recomendo especialmente as de Ruhland com o Capella Antiqua de Munique, esplendidamente expressiva em sua sobriedade, Wenzinger dirigindo a Schola Cantorum Basiliensis e a de Arsène Bedois com o grupo vocal Guillaume Dufay.

Em segundo plano, mas ainda bastante satisfatório, coloco as versões de Safford Cape com a Pro Musica Antiqua e a de John McCarthy e os Cantores Ambrosianos de Londres, Canções Baladas e Motetos diversos encontram-se ainda em versões respeitáveis com o conjunto que leva o nome do compositor, com o Capella Lipsiensis e com o conjunto Ricercare de Zurique.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 02/12/1984.

Guillaume de Machaut Joie, plaisence (chanson royale) – Dames, a vous (virelai) Studio Der Frühen Musik

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https://www.youtube.com/watch?v=EweIGnHBFzU


Imagem: WikiCommons

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