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Às vezes tenho a impressão de que há incompatibilidade natural entre a genialidade e o talento. Sempre que ouço qualquer das três versões d’O Messias com Beecham, chego à conclusão de que esse grande maestro fez deliberadamente com que sua genialidade derrotasse pelo menos nessas ocasiões, o próprio talento. Pois, com meios reconhecidamente equivocados, consegue resultados esplêndidos. E não é essa a marca da genialidade?

Seja você um purista ou não, não há como deixar de ter uma das versões d’O Messias de Haendel com Sir Thomas Beecham. As interpretações de Sir Malcolm Sargent e Sir Adrian Boult e também a recente de Sir Colin Davis (parece que na Inglaterra basta reger O Messias para receber o título nobiliárquico de cavalheiro) estão dentro das tradições inglesas do século XIX e ignoram fatos musicológicos incontestáveis. Apenas a última das três mencionadas merece hoje a nossa atenção. A versão de Davis é o que de melhor se conseguiu dentro dos limites da tradição vitoriana. Serve para aqueles que se contentam com o talento e com a seriedade. Davis dispensa inteiramente as demais versões tradicionais de Sargent, de Boult, de Bonynge (que ainda não é Sir, talvez porque, além de ter sangue italianado, casou-se com uma cantora de ópera, o que para os ingleses revela certo mau gosto). É interessante notar que, à época de seu lançamento, a interpretação de Davis foi aclamada pela crítica e pelos que entendem de música, como um grande esforço de recuperação da autenticidade formal, expurgada dos maneirismos vitorianos típicos. E, de fato, a redução das dimensões físicas do coro, além de uma preocupação perceptível com timbres, associado à inteligente distribuição espacial de instrumentos e vozes, restitui certo sentido de época, que é ainda acentuado pelos tempos rápidos adotados para os movimentos corais. Entretanto todo esse cuidado não chega. Eu diria que o espírito ainda é vitoriano. Tenho mesmo a impressão de que o esforço e o inegável talento de Davis acabaram por sufocar aquela centelha de genialidade de vinte anos atrás que nos fez supor que seria ele um dia o herdeiro de Beecham. Mackerras é quase tão atraente quanto Davis. Entretanto, se Mackerras, no plano formal, é mais deliberadamente fidedigno ao seu tempo, em espírito é ainda mais distante do que Davis. E, quando não se dispõe do toque genial de Beecham, essa é uma falha grave. Richter é pouco imaginativo e estilisticamente duvidoso e Klemperer apenas desajeitado.

Richter aparentemente teria tentado, mas sem sucesso, uma interpretação fiel ao estilo da época e ao mesmo tempo ágil e melodiosa. Isso foi alcançado tanto por Willcocks quanto por Leppard. Recomendo essas duas versões para aquele tipo de purista que se deleita com os timbres dos instrumentos autênticos e que também é exigente em relação a essa intangível qualidade que os especialistas chamam de musicalidade.

Malgoire faz uma tentativa, mas fracassa de maneira incompreensível, pois havia demonstrado anteriormente apreciável domínio do estilo adequado para Haendel, principalmente em sua excelente versão do Rinaldo. Dentre as gravações, denominadas históricas, minha preferência recai sobre aquela de Hogwood e sua impecável Academia de Música Antiga. Estou convencido de que a concepção formal é perfeita; apenas não foi explorada integralmente. Enquanto Davis esgota os recursos que lhe são concedidos por um estilo recondicionado, elaborado a partir de concepções postiças, com suas raízes na prática do século XIX, Hogwood, ignorando completamente a realidade moderna e reconstruindo sua visão da música de Haendel com base na prática do século XVIII, apenas começa a dominar os imensos recursos de uma nova via conceitual.

É ainda cedo para aclamar um novo mestre entre os maestros britânicos, mas se a disputa ficasse entre Davis e Hogwood, eu ficaria com o segundo. O Messias de Hogwood, embora revele muito do que Davis não percebe, nem sempre alcança a mesma intensidade ou exaltação que esse ou que Beecham. Eu diria que Davis apresenta uma excelsa safira, lapidada magistralmente, enquanto que Hogwood nos mostra um diamante ainda por lapidar. E a versão de Beecham seria uma maravilhosa alexandrita, uma pedra semipreciosa, mas raríssima, e fulgurante em suas cores de inesperados matizes. Portanto, não vejo como possa o leitor evitar. Compre pelo menos essas três versões pois nenhuma delas é suficiente, quando tomada isoladamente.

Bem, eu planejava me dedicar hoje aos Oratórios de Haendel em geral e acabei por me deter excessivamente n’O Messias. Que me perdoe o leitor a prolixidade. Voltarei ao projeto original no próximo domingo*.

*Ver artigo: “Um novo estilo para os Oratórios de Haendel” – 02/10/1983

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 25/09/1983.

Georg Friedich Händel

Messiah

Sir Thomas Beecham

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