Em Destaques, Música

Darwin está presente em tudo que estiver relacionado com a vida. A música não é exceção. A seleção natural atua também sobre as formas musicais. Em benefício daqueles que não estão familiarizados com a teoria da evolução das espécies, relatarei a seguir um acontecimento que se tornou antológico. As cabras montesas deviam sua sobrevivência na íngreme região em que viviam à capacidade de escapar de predadores, o que era possível apenas por causa de suas longas e poderosas pernas. Inúmeras tentativas de domesticação foram frustradas porque, ou o cercado era ultrapassado, ou os espécimes morriam acidentados na tentativa de ultrapassá-lo. Pois bem, eram comuns indivíduos de uma variedade mutante anã (com pernas curtas) que não sobreviviam no habitat natural incapazes de se deslocar rapidamente, mas que, não obstante se adaptaram bem ao cativeiro. Com a progressiva ocupação da região pelo homem a variedade com pernas longas foi extinta e aquela que era originariamente incapaz de competir, passou a dominar simplesmente porque se deu melhor com as novas condições.

A evolução musical ocorre por um processo semelhante. A imaginação criadora dos compositores os obriga a tentar novas formas continuamente e as mudanças do meio ambiente (a cultura, a sensibilidade, a experiência estética acumulada, seja lá o que for) seleciona algumas dentre as muitas soluções propostas. O caso do quarteto para cordas ilustra de maneira singular esse processo.

A mutação inicial ocorreu pelas mãos de Haydn que trouxe à luz essa forma, tendo como ator coadjuvante Mozart. Essa forma suplantou aquelas até então dominantes, a sonata da chiesa e a sonata da camera, assimilando de ambos alguns elementos, é verdade, mas colocando como componente fundamental a forma sonata. O meio havia mudado, ou seja, o gosto popular. É claro que existe um processo iterativo em que as escolhas dos artistas participam na geração de padrões de apreciação que por sua vez estimulam o artista nessa mesma direção. Mas mesmo assim a seleção ocorre.

Ao mesmo tempo que Haydn introduzia o quarteto, Boccherini propunha o quinteto para cordas, grupo instrumental que, nesse caso, acrescentava um violoncelo ao quarteto Clássico. Como explicar o fato de que o quarteto para cordas tenha sido adotado universalmente enquanto o quinteto nunca tenha ultrapassado o status experimental? E aqui incluo os Quintetos de Mozart, que preferiu dobrar a viola e não o violoncelo como fizera Boccherini. É claro que reconheço que essas seis peças de Mozart são obras-primas. Mas, não obstante, constituem ainda um fracasso formal pois não tiveram sequência. Os Quintetos de Schubert e Brahms de inegável beleza, também podem ser classificados como essas iniciativas singulares da natureza, que, produzindo variação, oferecem a oportunidade de novos roteiros evolutivos. Mas nada se compara com a sólida rota representada pelo quarteto para cordas, que até hoje, apesar de tantas mudanças no meio ambiente, permanece sobranceira no campo da música instrumental. Outra variação dissidente, o trio para cordas, teve um destino ainda menos glorioso que o quinteto.

Não é, pois, por acaso que tantos musicólogos e críticos atribuem a essa peculiar combinação de instrumentos, dois violinos, viola e violoncelo, o equilíbrio sonoro perfeito. Ficam assim explicados os esforços de Mozart, Schubert e Brahms, com seus respectivos quintetos, permanecendo como dissidências que confirmam o acerto da avaliação dessa fórmula como perfeita, ou quase. Pois se assim não fosse, teria o quarteto sido deslocado, tal é a qualidade das tentativas representadas pelas obras mencionadas. Assim, pois, para aqueles dias em que nos acomete certo cansaço da perfeição, que se entregue o melômano às delícias da maravilhosa música dos Quintetos para cordas de Mozart, de Schubert e de Brahms.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica.  São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 21/06/1987.

 Wolfgang Amadeus Mozart

The String Quintet No. 1 in B flat major, K. 174 (1773)

Orion String Quartet with Ida Kavafian, viola
Licensed by: Isabella Stewart Gardner Museum, Boston

Clique aqui!

Clique aqui!

Facebooktwitter