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Um dos enganos mais frequentes de ensaístas e críticos de arte em geral é a conclusão de que o Neoclassicismo recente resulta de uma reação às correntes progressistas que se originaram em meados desse mesmo século XX. Assim, o Neoclassicismo de Picasso é interpretado como uma rejeição do Cubismo que ele mesmo fizera eclodir. Da mesma forma Stravinsky ao adotar concepções nitidamente Neoclássicas estaria reagindo às suas próprias ideias revolucionárias quanto ao ritmo e à forma. Pois não há equívoco mais redondo que esse. O Neoclassicismo não é senão uma outra via para refutar o Romantismo. Nem as inovações rítmicas de Stravinsky nem as invenções estruturais de Debussy, nem o atonalismo e Serialismo de Schoenberg haviam dispensado o Romantismo. Haverá obra mais Romântica do que o Wozzeck de Berg? Ou que A História do Soldado de Stravinsky? Ou ainda os Noturnos de Debussy?

Em 1909, Mahler dirigiu a première de sua Oitava Sinfonia, aquela que veio a ser denominada a dos Mil. E, de fato, a denominação é apropriada, pois nessa ocasião mil e trinta cantores e instrumentistas participaram. Forças igualmente gigantescas seriam necessárias para os Gurrelieder de Schoenberg, então em gestação, e que estaria terminada apenas quatro anos depois. Grandes forças orquestrais eram naquela época associadas ao Romantismo. É interessante notar que a Oitava de Mahler já representa um esforço de fusão, mesmo em termos literais, do Romantismo teutônico representado pela figura mística de Fausto, com Helena, representante eterna do ideal Clássico. Em seus próprios termos Mahler reitera esse dipolo pela justa posição de suas próprias duas valências. Na primeira parte dessa obra magnífica imperam os grandes rasgos Românticos, enquanto na segunda Mahler se esforça para assegurar uma certa clareza e alguma objetividade. É verdade que Mahler é Mahler e mesmo o seu Clássico já contém traços inequívocos de Romantismo. E é também inquestionável que esse momento de eloquente expressão Clássica contida na segunda parte da Oitava de Mahler ainda é imensamente mais Romântico do que o Oedipus Rex, por exemplo, do período Neoclássico de Stravinsky. Acredito mesmo que o próprio esforço de conciliação entre Romantismo e Classicismo já é um gesto eminentemente Romântico. Seja ele produzido pela pena de Goethe, pelo pincel de Klee, ou pela música de Mahler.

Em resumo, estou convencido de que o Neoclassicismo, apesar das muitas intercalações revolucionárias não passa de uma censura ao Romantismo. Para Stravinsky, surpreendido por um lado por uma revolução social e política em seu próprio país, e ameaçado por outro por uma eventual transformação socioeconômica abrangente, a alternativa era rejeitar os meios magnânimos de que a música dispusera até então. Por outro lado, já era perceptível uma relativa ansiedade popular por objetividade e transparência que haviam sido as marcas características da música do século XVIII. O mundo intelectual estava cansado das pesadas cargas emocionais, das pungentes expressões metafísicas, fosse de Mahler, fosse de Brahms, fosse de Wagner.

Stravinsky, em uma decisão desnecessariamente óbvia, expele as cordas, busca formas Clássicas e reduz seus efetivos ao mínimo possível.

Típicos desse período Neoclássico de Stravisnky são o Octeto para instrumentos de sopro de 1923, e o Concerto para piano e sopros de 1924, também a Sinfonia para sopros é exemplo dessa reviravolta de estilo. É verdade que a concisão e a clareza, que são as características marcantes do Classicismo se mostram especialmente atraentes para os compositores dessa época, cansados das indefinições formais de Debussy, de um lado, e da complexidade harmônica e estrutural dos hiper-Românticos contemporâneos. Mas o retrocesso não é assim tão simples e Stravinsky, como todos os demais Neoclássicos, não consegue esconder uma certa ironia. É verdade que, pelo menos no caso de Stravinsky, esse espírito crítico é temperado com uma generosa dose de amor à música e aos mestres do passado.

Não é, pois, por acaso que sinfonias e concertos serão compostos por Stravinsky nesse período. Mas é bom lembrar que o que Stravinsky chama de concerto ou de sinfonia não é a mesma coisa que Mozart ou Haydn concebiam por essas denominações.

Mais uma vez insistirei com o leitor para adquirir essa magnífica edição das obras completas gravadas pelo compositor, que ocupa apenas trinta e um discos. Se era uma necessidade para os dois períodos iniciais da carreira do pequeno russo, com mais razão é um imperativo para seu período Neoclássico, que se estende desde inícios da década de 20 até sua morte, embora alguns analistas da obra de Stravinsky pretendam encontrar diferentes correntes nessa última fase da vida produtiva do artista. Em realidade, Stravinsky como Bach, é um exemplo desse paradoxo que tantas vezes percebemos na História das Artes. Todo revolucionário é um conservador.

O segundo grande intérprete desse período de Stravinsky é Ansermet, amigo dileto, que gravou com seu pessoal da Suisse Romande as Duas Suítes para Pequena orquestra, O Beijo da Fada (de período anterior), os Quatro Estudos, o Concerto para Piano e Sopros, e o Capricho para piano e orquestra (com Magaloff). Boulez e Craft são outros dois dedicados intérpretes de Stravinsky e o que gravaram é quase sempre excelente. Outros intérpretes seguros da obra de Stravinsky desse período são Fricsay, Dutoit (esse último com uma excelente gravação lançada no Brasil da Sinfonia em Dó Maior e da Sinfonia em Três Movimentos). Ozawa, Dorati, Marriner e Ančerl são regentes relativamente bem-sucedidos na obra desse último período de Stravinsky.

Ilustração: pintura neoclássica por Jacques-Louis David.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 13/04/1986.

Igor Stravinsky (1882-1971)
Symphony in C major
L’Orchestre de la Suisse Romande
Charles Dutoit
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