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O leitor, por certo, se é sensível e inteligente, já se encontrou nessa desconcertante situação frente a uma obra de arte. Há inequívoca percepção da grandeza da obra, mas falta compreensão. E sem qualquer esnobismo. Esse foi o sentimento dominante quando, pela primeira vez, ouvi o Wozzeck de Alban Berg, possivelmente em sua primeira gravação na segunda metade da década de 50. Pois ainda sinto, embora de forma muito atenuada, é verdade, depois de trinta anos de convivência, a mesma sensação de insuficiência.

Todavia, se me fosse imposto a escolha de apenas três óperas do século XX como as únicas às quais eu teria acesso pelo resto de minha vida, essas seriam Pelléas de Debussy, Wozzeck e Lulu, de Berg. Eu ficaria em grande conflito se me fosse permitido a escolha de apenas duas óperas. Se, por outro lado, me perguntassem quais as três óperas mais importantes, do ponto de vista musicológico, desse nosso século, eu, coincidentemente, escolheria as mesmas três obras. Não é intrigante? Talvez não. Há obras convencionais que me dão imenso prazer. Dentre as obras que mais escuto estão Acis and Galatea de Haendel e os Trios para piano de Schubert, por exemplo. Mas a História da Música nada se alteraria se essas peças nunca tivessem sido escritas. Pois as óperas de Berg assim como Pelléas de Debussy não somente são obras-primas de magnífico esplendor como também são marcos fundamentais na História da Arte.

O atonalismo foi o mais rebelde grito de liberação contra a tirania do intelecto sobre a inspiração. E Wozzeck representa uma das possíveis soluções para o atonalismo livre, em que formas fixas são usadas para gerar uma transparência formal. É claro que Schoenberg já havia usado fórmulas equivalentes desde Jakobsleiter que também teve como derivação o Serialismo ou ainda em Erwartung, em que um engenhoso contraponto atua como referencial. Todavia, essa estrutura formal, não teria tal sucesso não fosse a densidade dramática e a extrema concisão.

Lulu já é o resultado de um esforço supremo para compor uma ópera inteiramente baseada em uma única série, ou seja, sobre uma ordenação prévia das doze notas da escala cromática que também serve como a melodia característica da heroína por toda a obra. Uma análise superficial poderia considerar essa descrição da prática utilizada por Berg para construir Wozzeck como uma combinação da técnica do Leitmotiv de Wagner com uma nova e sofisticada referência abstrata, não muito diferente dos modos medievais. E, de fato, há certa verdade nisso. Entretanto, esse novo referencial, que serve tanto para a melodia como para a harmonia, permite uma liberdade imensamente maior, tanto em relação, obviamente, aos modos medievais quanto à escala diatônica. E Lulu é o exemplo magnífico da versatilidade desse sistema. É claro que poderá ser argumentado que o gênio de Berg se imporia qualquer que fosse o sistema, e esse é um argumento a que não se pode responder.

Foi recentemente lançada no Brasil uma gravação competente do Wozzeck com von Dohnányi dirigindo o Coro da Ópera e a Orquestra Filarmônica de Viena. Entretanto, essa visão não é comparável à fulgurantemente intuitiva visão de Böhm com o Coro e a Orquestra da Ópera de Berlim. Mas é Boulez que, conhecendo o atonalismo como ninguém, nos dá a versão definitiva de Wozzeck, em que consegue, paradoxalmente, a interpretação mais analítica e ao mesmo tempo mais intensamente lírica que existe. Dirige, nessa versão o Coro e a Orquestra da Ópera de Paris.

Boulez também nos oferece a mais eletrizante versão de Lulu em discos. Boulez usa a complementação de Cerha do terceiro ato (basicamente a orquestração que Berg não pôde concluir). Para os puristas informo que a versão de Böhm, que não inclui a complementação, acaba de ser relançada e é quase tão infinitamente emocionante quanto àquela de Boulez. Em Lulu, entretanto, a versão de Böhm é quase tão lírica quanto àquela de Boulez. Nesse caso, na versão de Böhm as Suítes Orquestrais extraídas de Lulu foram incluídas como compensação pelo terceiro ato.

A obra completa de Berg cabe em dez discos e para demonstrar esse fato a Deutsche Grammophon lançou toda ela em um único álbum. Böhm é o regente escolhido. Perlman é o intérprete ideal para o Concerto para violino embora Menuhin seja um digno competidor. Outros bem-sucedidos são Szeryng, Suk, Stern e Grumiaux. Essa é uma obra-prima que ninguém pode ignorar. Talvez a mais bela obra no gênero escrita nesse século.

Boulez é sempre uma segurança em Berg e tudo que dirigiu é excelente. Karajan é grande intérprete de Berg, assim como Abbado. Para os Quartetos, o Quarteto Alban Berg é o ideal, mas o Weller não fica atrás. Também o LaSalle está excelente.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 18/05/1986.

Alban Maria Johannes Berg

Lulu Suite

Membres de L’Ensemble Intercontemporain

The Philadelphia Orchestra

Eugene Ormandu, Regente

Luisa de Sett, soprano

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