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Há muitos indícios de que Bach tenha sido um excelente violinista além de frequentemente tocar a viola em conjuntos instrumentais. Suas Três Sonatas e Três Partitas para violino solo são a prova de seu conhecimento profundo do instrumento. Spitta e Schweitzer são de opinião que as concepções violinísticas de Bach determinaram em parte o seu próprio estilo na música para teclado. De fato, o fraseado e a modulação tão característicos de Bach em sua música para cravo e órgão procedem diretamente da técnica violinística dos séculos XVII e XVIII. Prefiro, entretanto, entender essa fusão de estilos como inerente ao universalismo da música de Bach. Pois também não apresentam por vezes o mesmo estilo no fraseado e na modulação os solos para soprano e para contralto?
O que é preciso, entretanto, entender é a posição central que têm as Sonatas e Partitas para violino solo e as Suítes para violoncelo solo na música de Bach, pois é exatamente nessas peças que o compositor concilia melhor a polifonia do século XVII com a homofonia do século XVIII. Bach é frequentemente acusado de retrógrado e conservador pela sua rejeição do novo estilo homofônico e outras peculiaridades associadas às novas formas musicais, já adotadas à sua época inclusive pelos seus próprios filhos, principalmente Carl Philipp Emanuel e Johann Christian. Creio, entretanto, que esse é um erro de percepção, pois Bach apenas se recusava a abandonar uma técnica polifônica que dominava com perfeição, adicionando, aqui e ali, momentos de homofonia.

E a prova está nas peças de Cöthen, escritas certamente antes de 1720, em que o baixo foi deliberadamente excluído. Ora, não há praticamente precedente na literatura de obras para cordas que não tenham acompanhamento. Vejam que até Schumann e Mendelssohn cometeram a insanidade de produzir um baixo no piano para essas peças, tal é o inesperado desse isolamento! Então o que motivaria Bach a escrever essas doze magníficas peças para violino e violoncelo solos, uma vez que é impossível sustentar uma estrutura polifônica indefinidamente em um violino ou violoncelo? Prefiro acreditar que Bach conscientemente estivesse escolhendo uma situação em que apenas uma alternância equilibrada entre homofonia e polifonia fosse capaz de sustentar o interesse.

Para mim tudo começou com a Partita nº 2 para violino e sua chaconne, em que o endiabrado menino Menuhin de antes da última guerra erigia um verdadeiro monumento de perícia e sensibilidade. Nunca consegui descobrir se usava arco reto ou curvo mas desconfio que Enesco, seu mentor àquela época, percebia as vantagens do arco tradicional na Alemanha nos tempos de Bach. Gravações das Sonatas e Partitas para violino solo já existiam com Heifetz desde a década de 40 e o grande violinista oferecia como sempre uma interpretação exuberante e competente. Entretanto, o furor de Menuhin era imbatível. Logo depois surgiu a interpretação de Milstein tão aceitável quanto a de Heifetz, talvez um pouco mais refinada. Eram essas três concepções, visões de grande concerto com caráter quase que sinfônico. Atualmente parece existir preferência para a percepção camerística dessas obras. Em última linha destaca-se a interpretação de Sándor Végh e Josef Suk. E nela Accardo consegue uma obra de tédio colossal. Igualmente supérflua é a interpretação Gotkovsky, como também ocorre com a versão de Felix Ayo.

A meio caminho entre as concepções de concerto e de câmera fica a interpretação de Szeryng, que não satisfaz nem sob um aspecto nem sob outro. Menuhin voltou a gravar nos anos 50 e no fim da década de 70 com relativa felicidade essas obras, reeditando até certo ponto o brilho e o vigor de sua interpretação juvenil original. Bem menos convincente é a sua penúltima gravação dos anos 70. Milstein gravou pelo menos duas vezes as Sonatas e Partitas para violino na fase do LP, que são versões plenamente satisfatórias. Além de Milstein e Menuhin, Grumiaux mostrou-se grande intérprete com estilo vibrante e decisivo.

A grande variedade de interpretações confirma a importância central dessas Sonatas e Partitas na obra de Bach. De minha parte eu recomendaria com insistência a obra completa com Grumiaux ou Milstein e a Segunda Partita, pelo menos, com Menuhin. Para aqueles que preferem um estilo mais introspectivo certamente Végh seria a melhor escolha.

Praticamente tudo o que foi dito sobre as Sonatas para violino pode ser repetido para as Suítes para violoncelo solo. Aqui, entretanto, a escolha de uma interpretação fica em grande parte simplificada, pois nesse campo o prodigioso Casals impera absoluto. Talvez não haja outro segmento da música em que um intérprete não tenha jamais desafinado. Desde 1940 Casals é absoluto. Fournier nos dá duas versões extremamente cuidadosas, mas sem a eloquência e a cosmovisão de Casals. E mesmo o grande Feuermann jamais procurou disputar a primazia com Casals. Gendron, Tortelier e Honeger também oferecem versões aceitáveis. Starker, apesar de sua competência e seriedade, é excessivamente frio e Harnoncourt é, embora academicamente perfeito, inteiramente destituído de brilho e de espontaneidade. Todavia, se você conseguir as gravações das Seis Suítes com Casals não precisa de mais nada. Possuo uma versão clandestina dessas peças com o grande violoncelista russo Rostropovitch e não compreendo por que não editou uma versão formal. Seria a sombra de Casals? Esses discos gravados em concerto demonstram que Rostropovitch traria uma interpretação extremamente interessante dessa obra se a preparasse para uma gravação cuidadosa.

 

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 29/01/1984.

Johann Sebastian Bach

The six cello suites

Vienna Philharmonic Orchestra

Pablo Casals

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