Em Destaques, Música

Pode-se dizer que a musicologia nasceu com a concepção de que os caminhos da arte são traçados pelo povo. Romain Rolland foi o último estudioso da música de alguma importância a acreditar que são os grandes artistas que traçam a trajetória evolutiva da música, independentemente de qualquer força social. O debate é fértil. Mesmo porque até os mais alertas musicólogos, vez por outra, caem na armadilha do individualismo romântico e raciocinam como se toda inovação, toda a progressão emanasse desse inescrutável abismo que é a imaginação criativa do gênio, que tudo explica, mas nada esclarece.
Uma confortável estratégia, essa de remeter todas as indagações ao insondável da alma humana. Ou simplesmente às profundezas inatingíveis do gênio, que por definição é mistério. Têm, pois, coragem, para dizer o menos, os musicólogos que procuram de olhos vendados uma correlação qualquer entre a obra de arte e as forças do inconsciente coletivo. Ou seria isso mesmo? Será que temos alguma ideia de como, enfim, se exprimiria essa relação primordial?
Em primeiro lugar vamos nos deter um pouco sobre esse refrão que tantas vezes utilizamos para encobrir nossa ignorância. O que queremos de fato dizer quando afirmamos que a obra de arte reflete o social? Certamente não será no sentido do realismo de Balzac e Stendhal, um simples relato impessoal, um relato fiel da sociedade. Ou seria uma impressão testemunhal, embora finamente codificada, simbolicamente representada da sociedade? Ou ainda, uma reação pavloviana, desencadeada pelo evento social, mas inteiramente construída em outro universo de ideias? E com misteriosas conexões inescrutáveis com o social? Seria uma reação racional e consciente? Ou instintiva, filogenética ou caótica? Ou seria uma reação de compensação? Da mesma forma que a rosa compensa o esterco e a luz reflete a morte?
É claro que essa discussão nada tem a ver com a fértil fecundação cruzada que a todas as épocas sempre ocorreu entre a música erudita e manifestações musicais populares. Consideremos um caso concreto. A ópera de Mozart, por exemplo. Ou melhor, suas três principais concepções nesse campo. Don Giovanni, As Bodas de Fígaro e A Flauta Mágica. O que têm essas obras a ver com os acontecimentos sociais de sua época?
Por que teria Beethoven tão arduamente condenado Mozart pelo seu Don Giovanni? Será que concluíra que a sublime música de Mozart absolvia, de certa maneira, o libertino que o libretto de Da Ponte condena? Todavia, também como ocorre nas Bodas, Mozart não deixa, de certa maneira, de instituir a promiscuidade imperante à época ao retratá-la. Pois para o moralista Beethoven, o simples reconhecimento e descrição serviriam, de certa forma, para consolidar a imoralidade. Pois bem, Fidelio, a ópera de Beethoven, ao exaltar a fidelidade conjugal e condenar o adultério, também institui a promiscuidade. Não somente em seu libretto mas antes de tudo na expressão musical.
É, eu sei que é difícil de acreditar. Mas vamos um pouco além. Todos se lembram desse magnífico quadro de Goya, A Execução do Terceiro de Maio. Que violento grito contra o despotismo, a injustiça social! Todavia, a denúncia não é apenas contra aqueles que no três de maio massacraram grupos inocentes, mas é contra a tirania, contra a força, contra a crueldade inerente ao poder. E isso não está escrito nas faces das vítimas em seus gestos de desespero. Mas nas cores branco e amarelo da roupa do cidadão a ser executado, no céu negro e no perfil ereto do torreão indiferente da igreja da cidade vizinha. Bach não é identificado como um espírito religioso porque escreveu tantas cantatas, oratórios, missas, mas pelo estilo polifônico organizado pelo transcendente; e o mundano Haendel é revelado pela sua anímica homofonia, e não pelos temas de suas óperas.
Pois bem, talvez eu não tenha convencido o leitor a adquirir essas três óperas de Mozart. Mas se por ventura o fiz, recomendo a série antológica com Furtwängler e a Filarmônica de Viena comprimida em quatro CDs mono com oito horas e meia de duração. É claro que não tardarão a ser reeditadas as versões de Busch e Beecham. Mas se o leitor faz questão de som e técnica moderna, que adquira A Flauta Mágica com Harnoncourt, o Don Giovanni com Giulini e As Bodas de Fígaro com Böhm. Por sua conta e risco adquira a versão recém-editada no Brasil de Maazel do Don Giovanni. Nem as maravilhosas vozes de Berganza e Te Kanawa são capazes de salvar do naufrágio a anódina e convencional concepção de Maazel, que aparentemente perdeu com a idade aquela ousadia de vinte anos atrás. Não aprendeu com Karajan, certamente.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 07/05/1989.

 

WOLFGANG AMADEUS MOZART (1756-1791)

As Bodas de Fígaro (Le Nozze di Figaro)

Orquestra Filarmônica de Viena

Regência: Karl Bohm

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