Em Destaques, Música

Em artigos anteriores examinamos as edições gravadas em disco das Cantatas, das Paixões e da Missa em Si Menor de Bach. Nesse último ensaio consideraremos os Oratórios, Motetos e restantes obras corais. E para começar retomemos um ponto essencial de nossas discussões anteriores. É um engano frequente e imperdoável a visão de Bach como um compositor isento, didático, lógico, frio. Procuramos mostrar justamente que a essência da interpretação de sua música coral estaria no equilíbrio entre o evocativo e o formal e entre a emoção e a expressividade. E além do mais procuramos expor a convicção da necessidade de espontaneidade em Bach tanto quanto em Schubert.

Três obras corais de Bach são conhecidas pela designação genérica de Oratório, embora essa denominação tenha aqui um significado inteiramente diverso daquele que teve para Haendel ou Carissimi, por exemplo. Estão os Oratórios de Bach mais próximos daquelas peças que Haendel chamou de Odes às vezes, embora tenha Bach, introduzido a figura do narrador em dois de seus três Oratórios. Para Bach são composições cerimoniais destinadas a ocasiões festivas associadas à liturgia. O Oratório de Natal é o mais extenso e elaborado dos três, e para muitos foi considerado como um mero agregado de seis cantatas justapostas sendo inclusive usada essa designação para as seis partes da obra. O fato de ser constituída fundamentalmente por movimentos de cantatas precedentes reforçou essa convicção de que se trata antes de um conjunto de cantatas independentes e não de uma obra integrada. E é notável como essa concepção transparece nas interpretações. Há uma diferença essencial entre as versões lançadas durante as décadas de 50 e 60 e aquelas posteriores a 1970. Dentre as versões concebidas como uma sequência de cantatas minha preferência recai sobre aquela de Kurt Thomas dirigindo o Coro de São Tomás e a Orquestra Gewandhaus de Leipzig, tendo como solistas Giebel, Höffgen, Fischer-Dieskau e Traxel. Bastante menos convincente é a versão de Richter com seu Coro e Orquestra Bach de Munique apesar dos excelentes solistas. Janowitz, soprano ideal para Bach, Ludwig, Wunderlich e Crass são atropelados pela histeria dos ritmos e das acentuações típicas de Richter.

Harnoncourt foi possivelmente o primeiro regente a levar a sério a integridade desse Oratório, com pertinência ou não. E o resultado é bastante atraente. Os solistas não são do mesmo nível das versões já mencionadas, mas são satisfatórios para a concepção sóbria e academicamente controlada adotada por Harnoncourt. A exuberância luminosa da maioria das partes fica apropriadamente reduzida nessa versão. Todavia, como de costume, leva a palma Münchinger com sua Orquestra de Câmera de Stuttgart e o excelente pequeno Coro de Lübeck e os impecáveis solistas de sempre. É novamente esse transcendente sentido de proporções de Münchinger o responsável pelo seu sucesso. Inesperadamente também o introspectivo Jochum se mostra um intérprete superior para essa peça festiva.

Em uma linha fundamentalmente expressiva, Ledger é igualmente bem-sucedido. A Orquestra Saint Martin-in-the-Fields e o Coro do King’s College estão excelentes, assim como os solistas. Ledger sabe como poucos explorar a riqueza de colorido inerente à música de Bach. Há ainda algumas outras versões que dispensam comentários.

Também para o Oratório de Páscoa minha interpretação preferida é a de Karl Münchinger e seu agrupamento tradicional. É uma peça breve sem narrador propriamente dito e os recitativos são assumidos por combinações e solistas. Outra versão meritória é a de Gönnenwein da década de 60, que durante muito tempo prevaleceu. Mais recentemente, Corboz apresentou sua visão alegre e descontraída sem, entretanto, deslocar as interpretações de Münchinger ou de Gönnenwein.

O Oratório da Ascenção é ainda mais conciso que o de Páscoa e costumeiramente é incluído entre as cantatas com o número 11. Merece destaque, além do que já foi exposto no artigo sobre cantatas, uma histórica gravação com Kathleen Ferrier nos primórdios do LP.

Quanto ao Magnificat, mais uma vez, e temo tornar-me redundante, Münchinger prevalece. Gönnenwein e Prohaska dão versões satisfatórias. E Richter repete sua visão rotineira. E para Ledger e Corboz repetimos o que foi dito a respeito do Oratório de Natal.

A melhor gravação existente dos Motetos creio ser a de Schneidt com o Capella Academica de Viena para a Archiv e tendo como alternativa viável o Collegium Aureum. Nenhuma das duas podem ser, entretanto, consideradas senão como versões provisórias. Ainda menos satisfatórias são as versões de Forster com o Coro da Catedral de Sta. Edviges de Berlim e de Willcocks com o Coro do King’s College.

Outro setor igualmente negligenciado é o das Missas Luteranas que não foram até o presente momento tratadas com a merecida dignidade.

Algumas conclusões de ordem prática podem ser extraídas desses quatro últimos artigos* sobre as interpretações das obras corais de Bach. Qualquer gravação de Karl Münchinger pode ser adquirida sem hesitação, quaisquer que sejam as inclinações do interessado. Aqueles com interesse musicológico deveriam buscar os discos de Harnoncourt. Klemperer e Jochum satisfarão sempre os espíritos românticos e religiosos. Richter, exceto pelas Cantatas, deve ser evitado, como também as visões idiossincráticas de Karajan. Corboz e Ledger satisfazem àqueles que se deliciam com o colorido e com a clareza. Bem, com essas informações o leitor poderá enfrentar as incertezas que apresenta a complexa escolha das gravações disponíveis. Mas lembrem-se, gosto é gosto. E sendo assim, nunca acreditem em críticos.

*Ver artigos: “O mundo inesgotável das Cantatas de Bach” (18/12/1983). Link: http://bit.ly/2erhJNb

As Paixões de Bach” (25/12/1983).Link https://rogeriocerqueiraleite.com.br/as-paixoes-de-bach/

O equilíbrio em Bach e a Missa Simbolum Nicenum” (01/01/1984). Link O equilíbrio em Bach e a Missa Simbolum Nicenum

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 08/01/1984.

Johan Sebastian Bach

[01-12] Magnificat BWV 243 – Karajan, Berliner Philharmoniker, Chor der Deutchen Oper Berlin

[13-15] Motets BWV 225-227 – Hanns-Martin Schneidt, Capella Academica Wien, Regensburger Domspatzen

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