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A sonata para piano e violino é um problema formal permanente. Não somente reproduz a dificuldade de conciliação do caráter percussivo do som do piano com a natureza melódica dos instrumentos de cordas encontrada nos Trios e Quartetos para cordas e piano, como também tem que abrigar ambições concorrentes dos dois solistas virtuosos. Além do mais, a sonata para piano e violino tem origem híbrida e esse particular tem que ser levado em consideração em toda concepção interpretativa. De um lado está a influência direta das grandes tocatas para cravo, em que o violino é introduzido não como uma voz autônoma, mas como simples ornamentação. É verdade que Bach já havia em seu tempo valorizado a atuação do violino em suas Sonatas para cravo concertante e violino. Mas até mesmo Haydn e o jovem Mozart adotaram a prática corrente do início do classicismo, atribuindo ao violino papel de mero acompanhante. Já no romantismo, a situação quase se inverte, talvez por força da exuberância virtuosística dos grandes violinistas da época.

Mozart foi o primeiro grande compositor que optou, já em sua maturidade, por uma procura consciente do equilíbrio entre dois solistas iguais. Essa postura, apesar dos deslizes eventuais do começo do século, foi adotada por Beethoven e quantos usaram essa combinação extravagante de instrumentos. E é preciso lembrar que o próprio Mozart foi um grande pianista, talvez o maior de sua época e um excelente violinista.

A procura de uma boa interpretação das Sonatas para piano e violino de Mozart deve, pois, partir do princípio de que não é necessária uma identidade absoluta de concepções estéticas e de temperamento entre os dois intérpretes justapostos.

É óbvio que a solução proposta por Mozart é inteiramente diversa daquela de Beethoven ou ainda da de Brahms. Enquanto esse último ultrapassa o conflito pela partilha de uma paixão comum, mais urgente que as ambições individuais dos dois instrumentos e Beethoven preserva o antagonismo como um valor inerente à vida e à música, Mozart usa de magia e política para transformar disputa em colaboração.

É conveniente que as Sonatas para piano e violino de Mozart sejam distribuídas em duas categorias. As primeiras dezesseis foram compostas entre 1763 e 1766, quando o compositor estava na transição da infância para a puberdade, entre seus seis e dez anos de idade. São, entretanto, obras bastante atraentes apesar da simplicidade da textura musical. Quem não acreditar que compre esse revelador disco da Archiv com Brandis, Zöller, Döling e Boettcher contendo as Seis Sonatas Op. 3 – Seis Sonatas para cravo com o acompanhamento de violino ou flauta transversal, chamadas de Trio por conterem a parte da linha do baixo para violoncelo -, KV 10-15 compostas todas elas em 1764 por um menino de oito anos de idade.

Mozart somente retomou essa forma musical em 1778, já compositor maduro de vinte e dois anos, e continuou compondo Sonatas para piano e violino até 1788, abandonando-a apenas três anos antes de sua morte, quando já havia composto outras dezessete peças completas, algumas inacabadas, além de inúmeras variações, fantasias etc.

Há uma coletânea em doze discos da Philips que inclui quase toda a obra de Mozart para violino e piano ou cravo, com Haebler e Szeryng encarregando-se da segunda série enquanto Verlet e Paulet se ocupam da primeira. A coletânea inclui ainda Trios e quartetos para piano. Infelizmente a dupla Verlet e Paulet não é suficientemente imaginativa e falta brilho e intensidade a Haebler e Szeryng. São certamente esses dois últimos intérpretes de Mozart imensamente competentes, mas, por algum motivo, ficam aquém de nossas expectativas. Vocês já observaram um casal em que marido e mulher nunca se desentendem? Jamais entram em competição ou divergem? Não há nada mais chato do que um casamento perfeito. Bem, para aqueles que se conformam com a harmonia absoluta recomendo a série Haebler e Szeryng, lançada pela Philips. Mas, para aqueles que acreditam que conflito é parte integrante da vida, sugiro que procurem desesperadamente a versão Szigeti contra Szell ou Horszowsky ao piano. Uma batalha amigável, esplêndida de cores e de melodia. E há também a delicada concepção de Frankl e Pauk das últimas dezessete Sonatas e a viril interpretação de Goldberg e Lupu.

Interpretações avulsas incluem Oistrakh com Badura-Skoda e Grumiaux com Haskil que merecem certamente nossa atenção, mas que não rivalizam com Szigeti e seus companheiros Szell e Horszowsky.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 29/04/1984.

Mozart Sonata

K.376 Mov 1 and 2 Szell/piano, Druian/violin (1967)

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https://www.youtube.com/watch?v=ELvcKGcGRJY


Imagem: trinity.nsw.edu.au

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