Em Destaques, Vida Nacional

Por Leonardo Boff

Vamos tentar fazer um esforço teórico para conferir um conteúdo analítico a “povo” para que seu uso sirva àqueles se sentem excluídos na sociedade e querem ser “povo”.

O primeiro sentido filosófico-social  deita suas raízes no pensamento clássico da antiguidade. Já Cicero e depois Santo Agostinho e Tomás de Aquino, afirmavam que “povo não é qualquer reunião de homens de qualquer modo, mas é a reunião de uma multidão ao redor do consenso do direito e dos interesses comuns”. Cabe ao Estado harmonizar os vários interesses.

Um segundo sentido de “povo” nos vem da antropologia cultural: é a população que pertence à mesma cultura, habitando determinado território. Quantas culturas, tantos povos. Esse sentido é legítimo porque distingue um povo do outro: um quéchua boliviano é diferente de um brasileiro. Mas esse conceito de “povo” oculta as diferenças e até contradições internas: tanto pertence ao “povo” um fazendeiro do agronegócio como o peão pobre que vive em sua fazenda. Mas no Estado moderno  o poder só se legitima se estiver enraizado no ”povo”. Por isso a Constituição reza que “todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido”.

Um terceiro sentido é chave para a política. Política é a busca comum do bem comum (sentido geral)  ou a atividade que busca  o poder de Estado para, a partir dele,  administrar a sociedade (sentido específico). Na boca dos políticos profissionais “povo” apresenta grande ambiguidade. Por um lado expressa o conjunto indiferenciado dos membros de uma  sociedade determinada (populus) por outro, significa a gente pobre e com parca instrução e marginalizada (plebs=plebe). Quando os políticos dizem que “vão ao povo, falam ao povo e agem em benefício do povo”, pensam nas maiorias pobres.

Aqui emerge uma dicotomia: entre as maiorias e seus dirigentes ou entre a massa e as elites. Como dizia N. W. Sodré: ”uma secreta intuição faz que cada um se julgue mais povo quanto mais humilde é. Nada possui, mas por isso mesmo orgulha-se de ser “povo”(Introdução à revolução brasileira, 1963, p. 188). Por exemplo, nossas elites brasileiras não se sentem “povo”. Como dizia antes de morrer em 2013 Antônio Ermírio de Moraes: ”as elites nunca pensam no povo, somente em si mesmas”. Eis o problema.

Há um quarto sentido de “povo” que se deriva da sociologia. Aqui se impõe certo rigor do conceito para não cairmos no populismo. Inicialmente possui um sentido político-ideológico na medida em que oculta os conflitos internos do conjunto de pessoas com suas culturas diferentes, status social e projetos distintos.

Esse sentido  possui parco valor analítico, pois é globalizador demais embora seja o mais usado na linguagem da mídia e dos poderosos.

Sociologicamente “povo” aparece também como uma categoria histórica que se situa entre massa e elites. Numa sociedade que foi colonizada e de classes, aponta clara a figura da elite: os que detém o ter, o poder e o saber. A elite possui seu ethos, seus hábitos e sua linguagem.  Face a ela, surgem os nativos, os que não gozam de plena cidadania nem podem elaborar um projeto próprio. Assumem, introjetado, o  projeto das elites. Essas são hábeis em manipular “o povo”: é o populismo. O “povo” é cooptado como ator secundário de um projeto formulado pelas elites e para as elites.

Mas sempre há rachaduras no processo de hegemonia ou dominação de classe: lentamente da massa, surgem lideranças carismáticas que organizam movimentos sociais com visão própria do pais e de seu futuro. Deixam de ser “povo-massa” e começam a ser cidadãos ativos e relativamente autônomos. Surgem sindicatos novos, movimentos dos sem terra, dos sem teto, de mulheres, de afrodescentes, de indígenas entre outros.     Da articulação desses movimentos entre si nasce  um “povo” concreto. Já não depende  das elites. Elabora uma consciência própria, um projeto diferente para o país, ensaiam práticas de resistência e de transformação das relações sociais vigentes. “Povo”, portanto, nasce e é resultado da articulação dos movimentos e das comunidades ativas. Esse é o fato novo no Brasil e na América Latina dos últimos decênios que culminou hoje com as novas democracias de cunho popular e republicano. Bem dizia um líder do novo partido ”Podemos” na Espanha: ”não foi o povo que produziu o levante, foi o levante que produziu o povo”.(Le Monde Diplomatique, janeiro p. 16).

Agora podemos falar com certo rigor conceitual: aqui há um “povo” emergente enquanto tem consciência e projeto próprio para o país. “Povo” possui  também uma dimensão axiológica: todos são chamados a ser povo: deixar de haver dominados e dominadores, elites e massas, mas cidadãos-atores de uma sociedade na qual todos podem participar.

Publicado no JB (02/02/15)

Leonardo Boff. Teólogo e Filósofo.


Créditos de imagem: na própria imagem.

Facebooktwitter