Em Destaques, Literatura

Por Antônio Muniz Rezende

Aos 85 anos de idade, Rogério Cerqueira Leite oferece-nos, como presente, a autobiografia que acaba de publicar, com o título Um Aprendiz de Quixote. De maneira inteligente, com humor, e por vezes bastante sério, vai nos falando sobre fatos e pessoas com as quais relacionou-se ao longo da vida.

A leitura dos diversos capítulos, pelo menos da primeira vez, é rápida e confortável, em razão dos fatos relatados, em capítulos às vezes bem curtos. No entanto, o leitor atento, aos poucos vai sentindo a necessidade de uma segunda ou mesmo uma terceira leitura, no intuito de perceber ainda melhor o alcance e a importância dos fatos mencionados, seja em relação ao Autor, seja em relação ao Leitor.

Isso acontece principalmente quando chegamos ao último capítulo, em que o Rogério como Autor, informa-nos a respeito da metodologia que utilizou e , por isso mesmo, poderia ser utilizada também pelo Leitor.

Pessoalmente, gostei muito do que o Autor escreveu em seu último capítulo, a tal ponto que, como Leitor, permito-me retomar os mesmos temas, convidando outros eventuais Leitores a adotarem um ponto de vista parecido. O primeiro aspecto relevante aparece com a seguinte frase do Rogério:

“O paradoxo decorre da percepção equivocada de que o homem é um ser absolutamente unívoco”

No presente contexto, mas também no da psicanálise e da filosofia contemporâneas, esta frase não deixa de ser uma referência ao tema da simbolização e do pensamento complexo, principalmente nos termos sugeridos por Lacan e Bion, Paul ricoeur e Jacques Derrida, Illya Prigogine e Edgar Morin. A partir deles é que costumamos definir o símbolo como:

“uma polissemia encarnada, estruturando-se dinamicamente, na dialética da imanência com a transcendência”.

De maneira mais explícita, fica evidente que só há símbolo quando há polissemia, com muitos sentidos (sema, em grego); juntamente com uma polissemiótica , com muitos sinais (semeion em grego).

Mais ainda, tudo isso acontece de maneira dinâmica, como dito sinteticamente na expressão “fazer sentido” : há sentido, e há sentidos … se fazendo de maneira dinâmica; mas também dialetica, no reconhecimento de que “um” não é idêntico ao “outro”.

Por isso mesmo, o dinamismo da simbolização torna-se evidente na dialética da imanência com a transcendência … isto querendo dizer que há sentido aquiagora, mas “não só aqui, nem só agora”, em razão da transcendência. Inspirando-nos em Bion, podemos explicitar o raciocínio do Rogério da seguinte forma: “há sentido (no singular), há sentidos (no plural), há mais sentido (em razão da transcendência). Há sentido para mim, mas também para os outros

E lembrando suas origens na Índia, Bion sintetiza o assunto nas seguintes exclamações “! Oh! Om!”. ! em função da percepção existencial. OH! num gesto de admiração diante de descobertas surpreendentes. OM! No reconhecimento de que há muito mais do que podemos perceber e dizer. E, no contexto da cultura inglesa, Bion não deixa de citar Shakespeare na frase bem conhecida:

“Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode suspeitar a nossa vã filosofia”.

Outra frase do Rogério, que nos faz pensar, é a respeito da pessoa humana, conotando a importante distinção entre personalidade e personagem. Na linguagem de Fernando pessoa, é a distinção entre “O eu profundo e os outros eus”.

Com a ajuda de Paul Ricoeur (O si mesmo como outro), de Merleau-Ponty (A fenomenologia da Percepção) e de Emmanuel Mounier (O Personalismo), podemos definir a personalidade como sendo:

“uma estrutura de relações marcantes, de natureza emocional-afetiva, que desde o início a caracterizam, diferenciando-a de outras personalidades assim igualmente constituídas”.

De certa forma, semelhante concepção da personalidade decorre de nossa maneira de conceber o símbolo como polissemia: a personalidade também é polissêmica, tanto no contexto da semântica, como da semiótica. Nos termos do Rogério:

“Se, por outro lado, consideramos o homem como uma superposição de características derivadas de sucessivas vivências, o paradoxo do comportamento generoso e de muitos outros comportamentos, aparentemente paradoxais, são facilmente explicaveis”.

Antes de prosseguir, permito-me dar como exemplo paradoxal, a coexistência da imanência com a transcendência. E digo bem: tanto a transcendência na horizontal (no relacionamento com os outros), como a transcendência na vertical (no relacionamento com o Outro – que Bion chama de “O”)

Em todo caso, Rogério tem toda razão em falar da “superposição de caraterísticas” … sabendo que “caráter”, em grego, tem precisamente o sentido de marca (e por isso mesmo definimos a personalidade como “estrutura de relações marcantes…”)

São marcas que caracterizam … muito precisamente em termos de relações ou “relacionamentos”, a que o Rogério chama de vivências .

Isso vai tão longe que, principalmente na linguagem de Melanie Klein, o principal enfoque das relações humanas passa a ser a Inveja e a Gratidão.

A característica principal da inveja é “ver o bem com maus olhos”; e a característica da gratidãover o bem com bons olhos”. O bem nos outros, mas também em si mesmo. Como tal, a gratidão é generosa, tanto em termos de reconhecimento como de retribuição.

Quem melhor trabalha este assunto em termos filosóficos é Heidegger, em seu livro “O que significa pensar”, com o subtítulo “Pensar significa ser grato”. E Jacques Derrida continua, indo além de Deleuze-Guattari (a propósito da esquizoanálise), propondo-nos distinguir os três momentos da construção (defensiva), da descontrução (crítica) e da reconstrução (criativa). A generosidade é sinal da Gratidão que reconhece e retribui o que de bom e melhor existe no relacionamento das pessoas entre si.

No entanto, também agora, não se trata de uma experiência “simples” (e muito, menos “unívoca”), exatamente porque também a personalidade não se concebe de maneira unívoca nem monolítica.

A seu propósito, usando uma linguagem típica do teatro (principalmente com a ajuda de Lacan, ao lembrar-nos que “o sonho é como uma peça de teatro na cena do inconsciente”), podemos distinguir entre a personalidade e os personagens no desempenho de um papel. Aliás, a polissemia fica ainda mais evidente se distinguirmos o Autor, os Atores, os Personagens, os Papeis, a Máscara, a Roupa, a Fala, os Atos, e a própria Cena.

A respeito da mudança de Cena, no teatro grego, usava-se a expressão “mudança catastrófica”, para significar uma “mudança”, durante a qual o Coro cantava uma “estrofe”, anunciando o novo Ato, a ser representado: cataestrofe, com mudança de cena.

Para falar da polissemia da personalidade, Rogério serve-se da “analogia com o crescimento de uma árvore com novas camadas”. E o próprio Bion chega a dar um exemplo ainda mais simples, com as várias camadas de uma cebola, e um núcleo central.

Em todo caso, a comparação pode ficar ainda mais clara se adotarmos o ponto de vista histórico, em suas diversas fases: da vida intrauterina, do nascimento, da infância … até chegarmos à idade adulta e à velhice. E o Rogério convida-nos a acompanharmo-lo de maneira corajosa e confiante, ao longo da vida, do começo ao fim.

Por seu lado, Bion introduz o conceito de Caesura, como corte permitindo distinguir entre o que vem antes e o que vem depois. Evidentemente, o primeiro corte (ou cesura) é o do cordão umbilical, a cujo respeito Lacan fala de uma “separação individualizanhte”, como primeiro desafio na continuação do relacionamento do bebê com a mãe.

E assim vão surgindo outros grandes desafios, durante a vida psíquica e social! Será que a “separação individualizante” não nos faz correr o risco da esquizofrenia, ou até mesmo do autismo? Não apenas na forma de uma defesa-protetora, mas de uma aversão à comunicação – como ataque muito mais que defesa? (Este não deixa de ser um dos muitos aspectos da tragédia de Nietzsche: na solidão, no desamparo, no desespero, com fantasias suicidas!).

O ego-centrismo não deixa de ser uma falsa solução (narcísica), com o empobrecimento da própria personalidade (entendida como estrutura de relações). Aliás, tudo que foi dito antes ainda postula uma melhor compreensão do que seja a própria estrutura.

Digo isso, pensando principalmente na contribuição de Merleau-Ponty (sobre quem fiz minha tese de doutorado em filosofia), tanto na Estrutura do Comportamento como na Fenomenologia da Percepção. Para ele:

a estrutura é uma multiplicidade unificada por uma ordem, cujo sentido é correspondência intencional à situação existencial”.

Como se pode ver, esta não deixa de ser uma tentativa de integração (estrutural!) da contribuição tanto do estruturalismo, como da fenomenologia, do existencialismo como também da psicanálise bioniana. De maneira admirável, Lacan faz também sua síntese, com a célebre frase que todos citamos:

“o simbólico é a norma que preside a estruturação das estruturas”

Novamente, podemos ver como se propõe uma síntese semântica entre as noções de símbolo, de personalidade, de estrutura … numa experiência existencial.

E o que há de admirável no livro do Rogério é que, sabendo ou não sabendo, ele usou e nos convida a usar esses conceitos metodológicos, aceitando o desafio de suas consequências na auto-estima. Vejam como escreve:

“Reconheço, hoje, que sou um produto de várias experiências, algumas identificáveis e que, portanto, não mostro um comportamento coerente. Às vezes sou generoso, às vezes egocêntrico, às vezes rancoroso, ás vezes tolerante”.

Com semelhante declaração, Rogério acaba introduzindo mais um tema precioso, tanto da filosofia como da psicanálise: o tema da verdade. E com ele, a pergunta: quem sou eu de verdade?

A resposta, novamente, leva em conta a polissemia, na maneira de colocar o tema da verdade, tanto em filosofia como em psicanálise. Nas ciências formais (como a matemática), a verdade é entendida como coerência. Nas ciências empírico-formais (do tipo da física), a verdade é entendida como correspondência ao real. Nas ciências humanas (do tipo do direito) a verdade é entendida com consenso simbólico.

Mas a psicanálise ainda constitui um caso à parte, no âmbito das ciências humanas e, para ela, a experiência da verdade leva em conta tanto a presença do Inconsciente e como das experiências emocionais, a tal ponto que a principal definição da verdade passa a ser como concordância ou concórdia. Inicialmente, a concordância entre o Consciente e o Inconsciente de cada um, mas em seguida a concordância entre um primeiro sujeito e os outros.

(A este propósito, publiquei um livro com o título A questão da verdade na investigação psicanalítica). Neste livro, tento mostrar como a verdade apresenta-se muito mais como questão do que como resposta. A tal ponto que, com Bion, podemos afirmar o seguinte:

“mais que cura, a psicanálise é procura, uma procura da verdade. E se alguma cura existe, ela resulta de uma procura continuada de uma verdade inalcançável”.

Por outro lado, na enumeração dos adjetivos usados pelo Rogério,             (generoso, egocêntrico, rancoroso, tolerante…) não deixamos de reconhecer também a presença dos elementos de psicanálise, tais como descritos por Bion (em seu livro Elementos de Psicanálise).

Vejam: a relação continentecontido; a relação posiçãoesquizoparanóide e a posição depressiva; a relação amoródioconhecimento; a relação razãopaixão; a relação afetoemoção sentimento

Não seria exagero dizer que o Rogério teve a generosidade (com humildade e coragem) de nos presentear com uma amostra de sua auto-análise… bem informada e, tanto quanto, possível verdadeira, na busca de uma concórdia consigo mesmo e com os outros.

A este propósito costumo dizer que, no fim da vida, quase espontaneamente, os idosos são levados a fazer um testamento, que é também testemunho, na forma de um acabamento do que foi vivido nas fases anteriores.

Testamento como um legado, (mais ou menos precioso), para as próximas gerações, a começar pelos membros da família. Isso é tão sério que, mesmo do ponto de vista da história das religiões, costumamos falar do Antigo e do Novo Testamento.

Testemunho como indicador de como o sujeito em questão levou mais ou menos a sério os valores em que acreditava. E um exemplo também de ordem histórico-cultural são as Confissões de Santo Agostinho, mas também as de Pablo Neruda (Confesso que vivi) e as de Darcy Ribeiro.

Acabamento no sentido em que os artistas dão um toque final em suas obras de arte, antes de expô-las ao grande publico.

Neste sentido também, a procura da verdade adquire uma dimensão ainda maior, não apenas no sentido da continuidade, mas principalmente da coerência, da correspondência, do consenso – e da concordância.

Digo isso porque ainda há no texto do Rogério uma longa parte relativa à sua inserção na comunidade, tanto em termos universitários-acadêmicos e técnico-científicos, como estético-artísticos e sócio-políticos. Dada a importância destes aspectos, eu quase diria que cada um deles mereceria outra resenha, com comentários específicos a respeito de cada tema e de seus interlocutores.

Mas desde agora não posso deixar de ver e mostrar a seriedade com que Rogério se envolvia, investindo seus próprios recursos e fazendo apelo ao dos outros, em vista de uma solução verdadeira. Grandes projetos, tanto em termos técnico-científicos, como sócio-culturais, para o bem da população.

No entanto, pessoalmente, como Leitor, vou permitir-me fazer coro com o Rogério, no tocante à Unicamp, no período em que fui diretor da Faculdade de Educação, por indicação do Rogério (cf. pg. 129, nota 41)

Minha crítica ao Reitor Zeferino Vaz, e à equipe que orientava a UNICAMP nessa época, costuma ser a respeito da concepção acanhada que eles tinham do papel da Faculdade de Educação. Quando Zeferino perguntou-me se a Faculdade de Educação poderia “funcionar” no mesmo nível do Instituto de Física, … eu escrevi uma espécie de Programa, com o título “Crise cultural e subdesenvolvimento brasileiro”.

A impressão que tive foi de que o Reitor e sua equipe não tomaram conhecimento de minha proposta, ou não a levaram a sério. No máximo, e com relativa frequência, eu era procurado para discutir as questões do Departamento de Metodologia do Ensino … das outras disciplinas… das outras faculdades! Por exemplo: metodologia do ensino da matemática, metodologia do ensino da física, metodologia do ensino da biologia… Noutras palavras, mesmo em se tratando de uma Faculdade de Educação, a ênfase era dada às outras ciências … e nem tanto à educação e à cultura propriamente ditas.

Chego a dizer que era uma situação parecida com a da PEC 241 (que congela os gastos públicos para as áreas sociais por vinte anos), nos dias de hoje, “investindo na tecnologia e na economia, mais do que na educação, na saúde e no bem comum”.

Isto acontecia depois da década de 60! Ora, nos anos 60 principalmente, nós vivemos a Revolução Cultural na França e em outros países. (No Canadá francês, onde vivi, foi a Révolution Tranquille). Enquanto isso, no Brasil, em vez de uma Revolução Cultural, tivemos a Revolução Militar … E o Zeferino, como reitor da Universidade de Brasília, não deixou de ser “influenciado” pela ideologia da Escola Superior de Guerra.

Quando, em 69, fui para a Europa fazer meu segundo doutorado, foi com a intenção, muito precisamente, de fazer uma tese criticando o ”dogmatismo da Escola Superior de Guerra e sua doutrina sobre a segurança nacional”. Ao voltar ao Brasil, e ao assumir a direção da Faculdade de Educação, foi com a mesma perspectiva de uma revolução cultural também em nossa pátria.

No entanto, tive a impressão de que o Reitor e sua equipe não tomaram conhecimento de minha proposta, ou então não a levaram a sério…E esta foi uma das principais razões pelas quais acabei mudando para a área da psicanálise, para continuar a trabalhar em termos de transformação, não apenas no nível do consciente, mas também do Inconsciente individual e coletivo.

Os três últimos cursos que ministrei foram exatamente estes: psicanálise da experiência sócio-cultural; personalidade e simbolização; semântica e semiótica. Todos eles no contexto da problemática característica dodesenvolvimento e da maturidade”.

Fico agora contente ao constatar como o livro do Rogério não deixa de ser um exemplo, e igualmente um convite, a que seus leitores tentem fazer uma auto-análise, em confronto com as atuais vivências históricas, de nosso país … e do mundo.

Por todos esses motivos, meu caro Rogério, termino apresentando-lhe meus agradecimentos, meus parabéns.

Antonio Muniz de Rezende. Psicanalista. Doutor em Filosofia (Universidade Católica Louvain/Bélgica). Doutor em Teologia (Universidade Santo Tomas de Aquino/Roma). Professor titular aposentado da Unicamp.


Imagem: Pandemonium – Entrevista com Rogério Cerqueira Leite / ECOVOXTV

Facebooktwitter