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Uma das minhas primeiras experiências maiores com a música de câmera ocorreu graças ao Quarteto “A Morte e a Donzela” de Schubert. E não foi na sala de concerto, mas com uma gravação dos anos 40, ainda em 78 rpm, que encontrei em um sebo de discos que se localizava em uma minúscula sobreloja nas imediações da Praça da Sé. Essa gravação, com o extinto Quarteto Filarmonia, me mostrou que é possível exprimir sem angústia um sentimento imensamente trágico. “O covarde morre mil mortes”. A donzela de Schubert encontra a morte, enfrenta-a, e é derrotada, mas com dignidade. É claro, não espere o leitor nenhum esboço programático. Schubert é um músico absoluto. Mas a morte está presente e também a coragem. Pouco depois encontrei a versão do Quarteto Busch, e descobri que pode haver sensualidade na morte. Schubert se enamorara um pouco, talvez, pela morte. Mais tarde, já no começo da década de 50, foi a vez do Budapest, em que a serenidade e a justeza de proporções revelaram a percepção cósmica daquele espírito Romântico. São visões complementares. Cada um daqueles grupos havia percebido um aspecto do imenso gênio de Schubert. E acredito que, quantos vierem, tantos descobrirão um novo Schubert.

A versão do Busch de 1936 foi reeditada pela Electrola alemã e pela Turnabout americana. A versão do Budapest de 1953 existe em conjunto com o Op. 161 e o Op. 29, quartetos do mesmo período áureo de Schubert. A versão do Filarmonia acredito que ainda não foi reeditada e o sebo de discos da Praça da Sé já não existe há vinte e cinco anos. O aficionado terá que se contentar, pois, com as duas primeiras versões históricas. Também é possível sobreviver, embora com dificuldade, apenas com algumas das versões mais recentes. Sem a transcendência ou o sentido trágico expresso pelos seus predecessores, o Melos nos dá uma eloquente e bem proporcionada interpretação da obra integral de Schubert de Quarteto para cordas. É a única versão integral e representa sete discos, tendo recebido vários prêmios. Para fanáticos e aprendizes de suicidas, entretanto, essa versão não dispensa seja o Busch no Op. 161 e no A Morte e a Donzela, seja o Budapest, nos três últimos Quartetos.

Esse conjunto de Quartetos escrito entre 1824 e 1826 também foi gravado pelo Amadeus, quase sempre frio e preciso, pelo Italiano, desnecessariamente exibicionista, e pelo Chilingirian, por vezes imaturo. Em edições isoladas, alguns conjuntos tradicionais oferecem algumas boas interpretações. O melhor é o Praga que consegue expor com relativo sucesso o drama complexo do Schubert maduro. Outro intérprete competente é o Húngaro, que tantas vezes visitou esse nosso país, deserto de música. É preciso não esquecer a versão arrebatadora dada em 1934 do Quartettsatz pelo jovem Quarteto Budapest de então, reeditado por sua vez recentemente.

É ainda o Melos que nos oferece a mais satisfatória das versões modernas do Quinteto em Dó Maior, com a colaboração do grande violoncelista russo, Rostropovich. O vigor, a gravidade, a introspecção estão lá; não obstante, falta aquele toque heroico que caracteriza a interpretação clássica de Casals, Végh e seus companheiros do Prades, na década de 60, por vezes incontidos, mas sempre exuberantes de virilidade e de impulsividade. Há grande afinidade entre essa obra máxima da música de câmera do século XIX e o Quarteto 13 de Schubert em Lá Menor Op. 29. E é nesses dois grandes testamentos que Schubert apresenta sua cosmovisão enquanto, por outro lado, no Quarteto “A Morte e a Donzela” e no maravilhoso Op. 161 em Sol Maior, Schubert nos leva às profundezas de seu mundo íntimo, onde acalenta a Morte.

Uma outra interpretação eloquente do Quinteto nos foi dada pelo Alberni, tendo como violoncelo adicional Igloi. É uma visão tragicamente revoltada. Se a Unamuno fosse dada a incumbência de ditar uma concepção musical existencialista para essa obra-prima teria resultado nessa concepção do Alberni. A resignação filosófica de Kierkegaard teria produzido a edição do Budapest, com Benar Heifetz, que dominou a preferência popular por tanto tempo. Mas por que será que só me ocorrem visões existencialistas quando penso no Quinteto em Dó Maior e no Quarteto em Lá Menor. Às vezes tenho a impressão que enquanto nos Quartetos 14 e 15, respectivamente, A morte e a Donzela e aquele em Sol Maior, Schubert nos fala de sua morte íntima como homem e poeta, no Quinteto e no em Lá Menor ele nos faz comtemplar a morte cósmica, universal.

Há outras versões do Quinteto em Dó Maior que merecem referência. O Amadeus com Pleeth é bem balanceado. Eu diria sartreano. Nessa mesma linha semântica o Brandis é talvez equivalente. O Juilliard e o LaSalle apresentam concepções lógicas e bem delineadas, mas pouco reveladoras. As interpretações modernas do Quinteto e dos últimos três Quartetos não alcançam, entretanto, o mesmo grau de introspecção das interpretações clássicas. Às vezes penso que, com o nazismo, a morte rondava. Ou seria apenas coincidência o fato de que todos esses intérpretes que mencionamos, em sua maioria judeus, tenham se exilado pouco antes de suas interpretações antológicas?

Schubert escreveu também um maravilhoso Octeto, radiante de luz e de amor à vida. As melhores gravações são aquelas dos conjuntos derivados da Filarmônica de Viena e de Berlim. Há algo de vienense nessa música. Talvez seja por isso que o conjunto dessa cidade supera em expressividade e elegância o grupo de Berlim. O Melos, o Aureum e o Consortium Classicum apresentam concepções bastante satisfatórias. Os dois Trios para cordas são competentemente interpretados pelo Trio Euterpe e creio que não há outras edições dessas duas obras maduras da juventude de Schubert.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p.

Franz Schubert

String Quartet No 14 D minor Death and the Maiden) / Alban Berg Quartet

https://m.youtube.com/watch?v=Jlzv1yUFo-A

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Créditos de imagem: sementesdepapoula.blogspot.com

 

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