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A sonata para piano é uma contradição histórica. Nós que já assistimos tantos concertos constituídos exclusivamente de sonatas para piano de um único autor, Beethoven, Schubert, Mozart, e eventualmente meia dúzia de concertos com ciclos completos de sonatas, ficamos realmente surpresos quando descobrimos que essa é uma prática relativamente recente. Nem Beethoven, nem Mozart, e muito menos Schubert, deram concertos, ou presenciaram um, em que apenas suas sonatas fossem apresentadas.

Beethoven e Mozart apresentaram-se ao piano, é verdade, mas ou para platéias restritas ou, quando em concertos, em suas obras para piano e orquestra. É posterior à morte de Beethoven e Schubert a prática de concertos com um único solista ao piano. E quando isso acontecia, o repertório apresentado jamais continha as Sonatas de um Mozart, um Beethoven ou um Schubert. Esse último teve suas Sonatas dilaceradas em pedaços pelos editores para atender o público.

Então por que escreveram essas obras? Beethoven ainda tinha a esperança de vendê-las a editores que serviam aqueles amadores que tocavam para si ou para grupos restritos de amigos. Schubert publicou apenas três de suas Sonatas no mesmo esquema. Mas ele certamente percebia que suas três obras primas derradeiras jamais satisfariam os contornos comerciais impostos pelos seus editores. Não obstante, dedicou principalmente a essas três obras magistrais seus derradeiros esforços físicos e mentais.

Com Mozart a coisa é um pouco diversa. Certamente não podemos considerar o seu conjunto de Sonatas para piano solo como central em sua obra, pelo menos na mesma medida em que estão os conjuntos similares de Beethoven e Schubert. Talvez porque Mozart tivesse encontrado em concertos para piano e orquestra o mesmo veículo, ou então o mesmo substrato formal intimista, que Beethoven e Schubert só vieram a achar nas sonatas para piano.

A coisa fica ainda mais intrigante se lembrarmos que, contrariamente ao que ocorrera, é verdade, com Mozart e Beethoven, Schubert não teve à sua disposição, senão após os vinte anos de idade, um piano. Ou melhor, o papel que desempenha o piano, de verdadeiro confessionário, para Beethoven e Mozart, muito provavelmente não é o piano para Schubert. E, não obstante, é justamente em suas Sonatas para piano que alcança Schubert seus momentos de maior introspecção.

Mas não é possível falar nas Sonatas para piano de Schubert sem de alguma maneira compará-las com as de Beethoven. É claro que essa comparação merece um livro. Entretanto, é possível mencionar algumas pistas e com isso deixar a reflexão por conta do leitor.

Não creio, entretanto, que possa esse confronto ser realizado a partir dos métodos de trabalho de cada um dos dois compositores, como propõe John Reed*. Ele certamente tem uma parcela de razão, pois Beethoven parte de imediato da sinfonia e do conceito da forma sonata para suas primeiras Sonatas para piano. E não há testemunho mais eloqüente dessa firme determinação do que, digamos, o Op. 10 nº 2.

É claro que daí por diante, Beethoven tentou quase tudo até chegar às suas últimas Sonatas, ao fim do percurso. Não obstante, cada uma das experiências intermediárias obedeceu a uma sistemática. Como um obsessivo cientista que no laboratório experimenta todas as hipóteses alternativas para poder conscientemente abandoná-las. E chegar cada vez mais perto da verdade inexorável.

Há, certamente, um método em sua loucura. Enquanto isso Schubert se deixa levar por sua intuição. Enquanto  é possível um paralelo entre as últimas Sonatas dos dois compositores, nada permite qualquer comparação entre as anteriores. Como Schubert teria chegado ao mesmo ponto por caminho tão diverso, não sabemos. O que Beethoven conquista pelo trabalho a um tempo objetivo e obsessivo, Schubert alcança pelo caminho caótico do cosmos. E se Beethoven domina e incorpora o abismo psíquico do homem, pela sua incessante busca de ordem e rigor, Schubert agrega o imaginário primevo da humanidade pela força de sua percepção anímica e instintiva fantasia.

Que o leitor se valha dessa esplêndida gravação de Wilhelm Kempff do ciclo completo das Sonatas de Schubert para piano, reeditada recentemente em sete CDs. Aliás, se o leitor tiver paciência, também o ciclo das Sonatas de Beethoven com Kempff está para ser  lançado em CD. Vale a pena esperar.

* John Reed, Schubert: the Final Years, St. Martin’s Press, N. York, 1972.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica.  São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p.

Wolfang Beethoven

Wilhelm Kempff plays Beethoven’s Moonlight Sonata mvt. 1

“Sonata No. 14 in C-Sharp Minor, Op. 27, No. 2 “Chiaro di Luna”: I. Adagio Sostenuto”

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https://www.youtube.com/watch?v=O6txOvK-mAk&feature=youtu.be

Franz Schubert

 Wilhelm Kempff plays Schubert Piano Sonata in E Major D157 Mvt.I: Allegro ma non troppo

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https://www.youtube.com/watch?v=G-DNvv7FFYs&index=1&list=PL5B9D4E4568BE5187


Créditos de imagem: medici.tv

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