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“A obra de arte é independente de seu autor”, afirma uma corrente. “Convicções políticas, posturas sociais, ações individuais do artista, não interferem em sua obra. Nem tão pouco nela transparecem”. Teria o quarteto de Beethoven alguma coisa a ver com a sua proverbial sovinice? E seria O Cravo Bem Temperado um produto da subserviência aos mandatários do poder que transparece nos escritos de Bach? E o que tem a ver com os quintetos para cordas a futilidade do quotidiano de Mozart?

É claro que conciliações dessa natureza não são fáceis. Mas seria essa dificuldade suficiente para autorizar a conclusão de uma perfeita dissociação entre a obra musical e o ideário sócio-político do músico? É claro que haverá artistas inteiramente alienados do momento histórico. E não são, por certo, poucos. Todavia, esse também é um traço específico de seu ideário. Consideremos o caso de Richard Strauss, cuja exacerbada autoestima foi mencionada em meu último artigo nessa coluna*, tendo aparentemente provocado algum desconforto em alguns leitores. De fato, a sensação produzida por uma obra de arte não deve ser afetada pela revelação de um traço de caráter criticável. E é justamente por isso que não tem importância qualquer comentário sobre convicções pessoais dos artistas. Todavia, essa circunstância não altera o imperativo lógico de uma relação estreita entre o autor, em sua totalidade, com a sua obra.

Se Beethoven era sovina e se essa sovinice fosse um traço marcante de sua personalidade, então devemos ou não esperar que tivesse esse particular atributo participado da geração da obra de Beethoven. O fato de não conseguirmos identificar esse traço da personalidade não significa que ele não exista. Não teria sido necessário que Richard Strauss tivesse denominado A Vida de um Herói, seu poema sinfônico autobiográfico, para discernir a sua motivação auto adulatória. A denominação serviu apenas para estabelecer a consciência que o compositor tinha de seu próprio egocentrismo. Sendo enormemente inteligente resolveu assumir e explicitar essa criticável característica.

Mas vamos adiante, seus defensores costumam mencionar a perseguição que sofreu do Partido Nazista. O raciocínio é idêntico àquele que nos faz idolatrar os nossos caçados políticos. Como se todo indivíduo em conflito com o dragão fosse São Miguel! De fato, Strauss se redimiu em seu confronto com o nazismo após a violação de sua correspondência com o judeu Stefan Zweig. Mas esse conflito não neutraliza o oportunismo ao preencher os espaços liberados com a interdição de Bruno Walter e Toscanini. O fato de Richard Strauss não perceber a falta de ética que o assessorou por ocasião desses episódios confirma o seu agudo egocentrismo.

Muito bem, confirmado um traço de personalidade condenável, uma convicção política adversa em um artista, qual postura devemos adotar frente a sua obra? Podemos ignorar a óbvia demagogia fisiológica de Shostakovitch em seu tão popular Canto das Florestas? Ou a exaltação à força contida em O Anel dos Nibelungos de Wagner? Ou a grandiloquência do Don Juan e do Assim Falava Zaratustra de Strauss? E seria, por outro lado, aceitável a conclusão de que a obra de um fascista não nos permite outra conclusão. Seria uma indignidade dissociar uma obra qualquer de seu autor, pois nada há de mais íntimo para ele do que sua criação. Nela, está a sua percepção da Vida, do Universo e da Transcendência. Sublimado por vezes, é verdade, mas indelével. E se alguém não detectar na obra de Richard Strauss a idolatria do grandioso, do puro e do altaneiro, então é bom desistir da música.

* Ver artigo: “Paz e morte para Richard Strauss” – 04/10/1987 [http://bit.ly/2nrWUcE]

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 11/10/1987.

Richard Strauss

Also sprach Zarathustra

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