Em Destaques, Música

O legado da música ocidental pode ser representado por uma coletânea de blocos relativamente homogêneos que se destacam como unidades naturais e de excepcional valor cultural. Para identificar esses blocos vamos usar alguns critérios. O primeiro é a qualidade estética, o segundo é a sua “integralidade”.

O primeiro indício utilizado é de que tenham merecido seus componentes estudos em bloco, tais como livros, capítulos, análises técnicas. Ou seja, que a musicologia e o músico com freqüência invoquem seus componentes em grupo. Em seguida, é importante que sejam as obras conhecidas e apreciadas, senão pelo público leigo, pelo menos pelos iniciados. “Vox populi, vox Dei.”

E, em seguida, é fundamental que esses conjuntos também tenham tido um papel histórico. Ou seja, que representem adequadamente uma tradição, uma época, um estilo, uma escola.
Nossa escolha, reconhecemos de início, envolve um inevitável resíduo de subjetividade. “Peçam-me para ser honesto, e jamais imparcial”, nos ensina Goethe. Em ordem cronológica e sem qualquer pretensão de hierarquia, segue a nossa lista.

1. O canto gregoriano é certamente um exemplo claro de conjunto homogêneo, coerente, de sublime simplicidade e autônomo, que constitui um bloco coeso. É composto por 635 peças que, apesar de sua origem anônima, são imperecíveis e elevam a civilização ocidental há mais que um milênio.

Nenhum códex, nenhuma coletânea, nenhum autor da Idade Média se enquadra facilmente em nossos critérios de coesão, homogeneidade, imperativo histórico e estético, apesar da ocorrência de pérolas inegáveis. Assim, descartamos, embora com amargor, a obra excelsa de Hildegard von Bingen [1098-1179], a coletânea de Alfonso 10º, o Sábio [1221-1284], de canções a Maria, com suas 400 obras, as dispersas e desconexas canções dos troveiros e trovadores da França dos séculos 13 e 14.

É também com muita pena que rejeitamos as canções monofônicas e polifônicas de Guillaume de Machaut [1300-1377] do fim da Idade Média e as polifonias densas, porém perfeitas, de renascentistas tais como Dufay, Josquin, Ockegen, Lassus e Palestrina.

2. É a música coral, litúrgica e profana de Cláudio Monteverdi [1567-1648], que escolhemos em seguida para compor o nosso edifício. Embora musicólogos prefiram analisar os Madrigais como se fossem – e tivessem evolução – completamente independentes dos motetos e outras obras sacras de Monteverdi, ninguém poderá deixar de perceber que o rompimento com o “stilo ântico” a partir do 5º livro está indissoluvelmente ligado às inovações adotadas por Monteverdi na ópera e na obra religiosa, especialmente nas “Vésperas” à Maria.

Assim, a música coral de Monteverdi é escolhida não apenas pela sua coerência interna, ou pela sua excelsa beleza, mas também por representar, melhor que qualquer outro conjunto, uma revolução. Revolução esta que criou um novo estilo, aquele que muitos autores denominam “barroco”.
3. Os concertos de Vivaldi [1678-1741]. Conta-se que Stravinsky teria exclamado: “Ah, Vivaldi! Aquele que escreveu o mesmo concerto para violino 500 vezes!”. Outros dizem que foi Dallapicola. Em realidade não são 500, mas apenas 221 concertos para violino solo (mais cerca de 20 fragmentos e adaptações) e outros 260, ou tanto, para outros instrumentos. Todavia é certo que tanto Stravinsky quanto Dallapicola não conheceram nem 10% dessas obras de Vivaldi, pois só recentemente vieram a ser editadas.

Talvez fosse despeito profético, pois apenas um subconjunto com quatro concertos, “As Estações”, já teve, merecidamente ou não, um número de apresentações e gravações superior àquele que toda a abundante e gloriosa obra de Stravinsky e pelo menos umas cem vezes maior que a de Dallapicola. E hoje que conhecemos a grande maioria desses 480 concertos, podemos afirmar que não há traço de repetitividade nem de monotonia inventiva, harmônica ou melódica nesse monumental conjunto.

4. As cantatas sacras de Bach [1685-1750] constituem um monumento para o qual há, por certo, unanimidade, embora poucos tenham tido a oportunidade (ou sequer a paciência) de ouvi-las em sua totalidade. São 200 cantatas que representam o pináculo de uma forma que dominou o cenário musical durante o barroco.

5. Os oratórios e missas de Bach. Se perguntássemos a qualquer iniciado, músico profissional ou diletante, conservador ou progressista, quais seriam suas dez obras preferidas, com alta probabilidade seria escolhida ou a “Missa Symbolum Nicenum” (Missa em Si menor) ou a “Paixão Segundo São Mateus”, ou as duas. Se elas e outros oratórios e missas de Bach não se constituíram em aurora do porvir, certamente representam o mais esplêndido e conclusivo crepúsculo de uma era gloriosa, o barroco.

6. A música para teclado de Bach. Da “trivia” musical extraímos o paragão seguinte: “Se as sonatas de Beethoven são o Novo Testamento da música para teclado, o “Velho Testamento” é o “Cravo Bem Temperado” de Bach”. A extensa obra para teclado (órgão e cravo) de Bach é o maior monumento integrado do gênero, apesar da diversidade de suas formas, que resumem, com uma criatividade inigualável, praticamente tudo que se conhecia do gênero até a época.

7. Os oratórios e as óperas de Handel [1685-1759]. Representam a um tempo o pináculo e a extinção da ópera barroca. E o oratório clássico inglês, ao nascer das cinzas da ópera, atinge ele mesmo os píncaros da exaltação mítica.

8. As sinfonias de Haydn [1732-1809] apresentam, em sua lenta, prolongada e persistente progressão, o mais fantástico exemplo de evolução que nasce de uma fórmula que é pouco mais que uma bucólica serenata e chega, em pouco mais que cem passos infinitésimos, porém voluntariosos, para a mais complexa arquitetura sonora.

9. Os quartetos de Haydn constituem o segundo edifício forjado progressivamente por Haydn em quase 70 patamares sucessivos. É a torre gêmea de suas sinfonias, moldada paralelamente uma à outra, intercalados os passos. E é o modelo em que se apoiou toda a música de câmera do classicismo ao romantismo.

10. Os concertos para piano de Mozart [1756-1791] constituem um castelo privado, concebido principalmente já na sua maturidade. O artista parece tê-lo criado sem um projeto definido, permitindo que cada um de seus últimos 17 ou 18 concertos nascessem independentes, como obra autônoma, mas que não obstante, ao final, se constituíssem em um todo coeso.

11. As óperas de Mozart. Se Handel, para conceber suas óperas, assimilou estilos e fórmulas alemãs, italianas, francesas e até inglesas, para gestar um único princípio, Mozart adotou a opção oposta. Respeitou as formas existentes e criou “lieder-spielen” alemães melhor que qualquer outro alemão, óperas bufas melhor que qualquer italiano e óperas sérias tão boas quanto as de qualquer outro compositor.

12. As sinfonias de Mozart, contrariamente ao que ocorre com os seus concertos para piano, não constituem uma acumulação aleatória de obras autônomas, mas antes uma sucessão coerente, embora não sem algumas deliciosas tergiversações como a Haffner e a Praga. Existiria algo mais previsível e necessário que a Júpiter depois daquela em sol menor (nº 40)?

13. As sinfonias de Beethoven [1770 – 1827]. Enquanto Haydn elabora cuidadosa e progressivamente uma fórmula sinfônica ótima, perfeita, Beethoven aplica todo seu gênio em transgredi-la, embora sem destruí-la. Isto porque sabe que sem os trilhos impostos por fórmulas estritas tais como a forma-sonata, as variações etc., seu discurso eminentemente dialético descarrilaria.

14. Nos quartetos, Beethoven repete sua sina maldita; a luta “sisifísmica” contra os princípios do classicismo. Se esses não existissem, Beethoven os teria inventado, como Quixote com seus moinhos, para combatê-los em exaltada batalha. Mas que imenso monumento construiu com sua lança e sua espada!

15. Não menos glorioso que as sinfonias e os quartetos é o corpo formado pelas sonatas para piano de Beethoven. Todavia aqui a luta é mais serena, mais objetiva, mais consistente, talvez porque o piano fosse a sua casa, o seu lar.

16. Os lieder de Schubert. Enquanto Beethoven, Mozart, Haydn constroem seu universo com (ou contra) fórmulas complexas, grandes estruturas, Schubert [1797-1828] monta seu mundo de predileção com o que encontra de mais espontâneo, de mais simples, em seu caminho: a canção. São 600 pequenas jóias de melodia luminosa.

17. As óperas de Wagner [1813-1883] perfazem certamente um dos blocos mais consistentes da história da arte e não apenas da música. Resultam de uma química extemporânea para a qual contribuíram imensas quantidades de vaidade, de narcisismo, de vontade, de onipotência, e um pouco de genialidade. É um caso em que o resultado final supera em muito a soma dos fatores. Um mistério da natureza.

18. A música orquestral de Brahms [1833-1897] inclui quatro sinfonias, duas aberturas, dois concertos para piano e orquestra, um para violino e outro para violino e violoncelo. Pode parecer uma temeridade incluir em um mesmo grupo sinfonias e concertos. E certamente o seria se em vez de Brahms estivéssemos considerando Mozart ou Beethoven. Todavia os concertos de Brahms são em grande parte concepções sinfônicas. Além disso, embora o número de sinfonias seja pequeno, seria mais que suficiente para constituírem, sozinhas, um de nossos blocos.

19. As sinfonias de Mahler [1860-1911]. Neste ponto muitos por certo, vão discordar. Mas esse peso negativo é compensado facilmente pela paixão, senão fanatismo, que vem crescendo a respeito das sinfonias e canções que se fundem em Mahler. Não há dúvidas de que muitas são as obras que individualmente são mais atraentes que as de Mahler. Mas como bloco multiforme e, ao mesmo tempo, monolítico, nada além do que não foi aqui mencionado merece mais que a obra de Mahler incorporar esta lista.

O número 19 é desconfortável, não tem nada de cabalístico. Por que não 20? Debussy, Ravel, Stravinsky, Bartok, Schoenberg, gênios incontestáveis que compuseram obras primas maravilhosas, não tiveram a vontade ou a paixão para construir seus universos organicamente estruturados. O século 20 é vazio também desses monumentos.

Todavia, a mais aterradora observação é a concentração desses blocos musicais em uma única cultura. Dos nossos 19 blocos, 16 são provenientes da região composta por Alemanha e Áustria. A Itália contribui com dois gênios do Barroco. E depois, nada mais, talvez porque a ópera naquele país tenha soterrado a música. A França, talvez por excesso de espírito crítico, esteja fora. O último músico inglês genial foi Purcell, que morreu no século 16 e não deixou descendentes. E o século 20, talvez pelo seu experimentalismo obsessivo, pela inquietação orgânica, pela busca mórbida de criatividade, de originalidade também tenha fracassado.

Brahms Piano Concerto No. 1

 Pianista Arthur Rubinstein

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Créditos de imagem: pcguia.pt


* Publicado no jornal FSP de 31 de julho de 2005.

 

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