Em Destaques, Vida Nacional

(Entrevista com o Professor Catedrático António José Avelãs Nunes, da Universidade de Coimbra)

Como o senhor vê a assim chamada judicialização da saúde no Brasil?

Talvez para corresponder às aspirações e às exigências da população, o STF procura resolver algumas situações delicadas que o Congresso não se dispõe a solucionar. Provavelmente, isso alivia tensões e faz ver aos demais poderes que não podem continuar a “ignorar” a vontade difusa dos cidadãos, de encontrar soluções para problemas que se arrastam há anos.

Muitas vezes, entretanto, o Judiciário limita-se a ocupar o espaço deixado livre pela inação, incapacidade ou irresponsabilidade do Legislativo e do Executivo, ocupados por interesses que nem sempre coincidem com os dos cidadãos eleitores. Na minha opinião, tal atuação configura, em regra, violação clara, às vezes grosseira, do princípio da separação dos Poderes.

Seria uma tentativa de suprir deficiências do Legislativo e do Executivo?

As deficiências do Legislativo e também do Executivo, em termos de representatividade e de legitimidade, não autorizam o Judiciário a assumir poderes legislativos. Não se resolvem pelos caminhos da judicialização da política, porque esta arrasta consigo a politização da Justiça, ambas indesejáveis e nocivas ao desenvolvimento da democracia.

A solução passa por uma reforma do sistema político, que não pode ser feita pelos tribunais, para pôr fim ao estado de ancien régime, ocupado por uma elite que o utiliza como se fosse coisa sua, para se atribuir privilégios e manter o seu estatuto privilegiado.

Há situação semelhante na Europa?

Não conheço nenhum caso de cidadão português, e creio que o mesmo se passa nos outros países da Europa, que tenha ido a um tribunal pedir condenação do Executivo a adotar as medidas adequadas à efetivação do direito individual à saúde do requerente para fornecimento de medicamentos, recurso a meios de diagnóstico, realização de cirurgia ou outro tipo de tratamento.

No Brasil, como é sabido, as mais altas instâncias do Judiciário defendem a tese segundo a qual “quando a Constituição Federal consagra um direito e a norma infraconstitucional o explicita, impõe-se ao Judiciário torná-lo realidade, ainda que para isso resulte obrigação de fazer com repercussão na esfera orçamentária”.

Haveria extrapolação de competência?

O Judiciário não tem competência constitucional para definir programas de políticas públicas nem para reservar verbas de um orçamento aprovado por lei e destiná-las a fins diferentes dos previstos. Os juízes não podem alterar legislação aprovada pelo Legislativo. Do mesmo modo, um magistrado não pode confiar ao Ministério Público o manuseio dessas verbas, pois não compete a este administrá-las. Isso configura insustentável usurpação dos poderes do Legislativo e do Executivo. Existe a possibilidade de o Executivo aplicar políticas que não respeitem os direitos das populações, ou não adotar políticas que promovam esses direitos.

Só que a censura política do Executivo cabe ao Parlamento e aos cidadãos eleitores. Nenhum juiz e nenhum tribunal podem arvorar-se em “intérpretes” da vontade do povo e, muito menos, impor as suas escolhas políticas como se fossem do povo. Para fazer essas escolhas representando os cidadãos eleitores, elegem-se os parlamentos e só a eles cabe aprovar os programas dos governos e a legislação que estes devem cumprir na definição e execução das políticas públicas.

Decisões de diversos tribunais reconhecem o dever do Estado de fornecer gratuitamente medicamentos. Admitem ser lícito o bloqueio judicial de verbas orçamentárias para garantir o custeio de tratamento médico indispensável, e reconhecem até o direito dos tribunais de “superar quaisquer espécies de restrições legais” para concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à saúde.

“Superar quaisquer espécies de restrições legais”? Creio que é ir longe demais. O STJ, por exemplo, chega a defender a legitimidade do Ministério Público para exigir ao Executivo a execução de política específica, incluindo a tutela para inclusão de verba no próximo Orçamento, a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas. Ao reivindicar estas competências para o Poder Judiciário, o STJ nega que isso infrinja a harmonia dos Poderes, pois no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria Justiça que institui.

Nessas decisões, invocam-se a Constituição e a lei.

É verdade, mas o Estado de Direito Democrático é vinculado à Constituição e à lei e os tribunais não podem se colocar acima dos Poderes constituídos, ignorando que esta vinculação abrange também o Judiciário, que não deve exercer funções e tomar decisões que não cabem nas suas competências constitucionais.

A esse propósito, importa salientar que, sendo o Orçamento aprovado por uma lei específica do Legislativo, carece de legitimidade o ato de um juiz que se proponha alterar essa lei, modificando a destinação das receitas, ou que atribui ao Executivo o dever de alterá-la para cumprir a sentença do magistrado. Nem o Judiciário nem o Executivo podem usurpar competência reservada ao Legislativo.

Aceitar o contrário seria abrir um caminho perigoso do ponto de vista da estrutura do Estado de Direito Democrático. Invocar o ‘sagrado nome’ da Constituição para justificar o financiamento público de planos de saúde individuais, sacrificando o direito de todos à saúde mediante adequadas políticas sociais e econômicas, é, guardadas as distâncias, um verdadeiro sacrilégio.

Um juiz pode impor a inclusão de verba no próximo orçamento para o cumprimento de uma sentença?

Pode impor a quem? Ao Executivo? O orçamento traduz escolhas políticas que não cabem aos tribunais. E se o Executivo acatar a ordem e o Legislativo não aprovar a proposta do Executivo? O juiz manda prender os membros do Legislativo, por desobediência qualificada? Suspende os seus mandatos? Dissolve o Legislativo? Substitui o Legislativo? Há, perceba-se, um encaminhamento para o abismo.

Segundo o artigo 196 da Constituição Federal de 1988, “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

A meu ver, o que esta norma constitucional determina, com toda a clareza, é que o direito à saúde é coletivo, direito de todos ao acesso universal e igualitário às prestações dos serviços da área. Um direito que o Estado deve garantir através de políticas públicas sociais e econômicas, não apenas por meio do tratamento da doença e a entrega de medicamentos, mas, antes, prioritariamente, com medidas que visam à promoção da saúde e à prevenção e redução do risco de doença.

Ao fazerem tábula rasa desse preceito constitucional, parece que os tribunais brasileiros o concebem como um direito individual, cujo cumprimento pode ser exigido diretamente através de uma ação judicial, como se os problemas relacionados ao direito à saúde fossem problemas de justiça comutativa (dos quais devem ocupar-se os tribunais) e não problemas de justiça distributiva (cuja ponderação e solução só cabem a órgãos políticos legitimados pelo sufrágio universal).

Essas decisões que fazem prevalecer o direito individual mostram qual entendimento dos tribunais?

Os tribunais entendem que podem dispor de dinheiros públicos, mesmo que não inscritos no orçamento da área, para financiar planos individuais de saúde, em regra de indivíduos bem colocados na vida, pouco lhes importando que, deste modo, impeçam ou dificultem o financiamento público de direitos sociais de milhares de cidadãos dentre os mais pobres, os mais vulneráveis e os mais desprotegidos.

São recursos do SUS.

Se as pessoas com estatuto social e rendimento acima da média pretendem utilizar os recursos do SUS, devem fazê-lo como todo mundo: dirigir-se aos centros de saúde e aos hospitais, cumprir as regras estabelecidas e esperar a sua vez de ser atendidas. Os tribunais não podem servir como porta de acesso privilegiado para uns poucos, em prejuízo dos mais pobres, violando grosseiramente o princípio constitucional da igualdade e ofendendo a dignidade e o direito à vida e à saúde dos menos favorecidos, a pretexto de garanti-los aos mais ricos.

Nota: entrevista conduzida pelo jornalista Carlos Drummond.

CartaCapital [https://www.cartacapital.com.br/]: 03/05/2017.

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