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(Filmes como “Os Brutos Também Amam” incorporam a estrutura da forma-sonata criada por Haydn e Mozart)

A forma-sonata é o princípio que dominou a música instrumental desde o começo do classicismo, em meados do século 18, até pelo menos a eclosão do romantismo e, embora desvanecendo lentamente, manteve-se na liderança até o final do século 19.
Poder-se-ia mesmo dizer que a ascensão da música instrumental a partir do declínio do barroco, com o fim da geração de Bach, Haendel, Vivaldi, Rameau e outros, seria impossível sem a forma-sonata, pois esta se tornou o princípio praticamente universal de muitos dos movimentos dos gêneros em voga, da sinfonia ao concerto (onde eventualmente se mescla com fórmulas mais simples, como o ritornelo), da sonata para piano a todas as formas de música de câmera, de aberturas a intermezzos e assim por diante. Não obstante essa universalidade, poucos são aqueles, até mesmo músicos profissionais, que compreendem o significado desse princípio. Para uma primeira análise da forma-sonata, vamos ao cinema.

E será assistindo a um faroeste que vamos começar a desvendar essa intrigante e complexa estrutura musical. Em primeiro lugar, percebemos que todos os filmes desse gênero obedecem a um mesmo padrão. Com frequência, começa com a chegada do herói (ou do(s) bandido(s)) à cidade. É apresentado ao público o conflito em seus vários ângulos. É a “exposição”. Terminada essa etapa passa o filme a uma nova fase, em que o conflito inicial se desdobra em breves episódios em que a tensão se eleva e os contornos do conflito são melhor definidos -é o período denominado “desenvolvimento”. E enfim, em um terceiro segmento, o conflito chega ao desenlace, retornando a cidade ao estado natural, anterior ao conflito. A tensão é desfeita, e o relaxamento que advém com a sensação de alívio ou triunfo encerra a narrativa. Dialeticamente, retorno e alívio são equivalentes. É, pois, chamado de recapitulação esse último capítulo. E não é essa fórmula a mesma da tragédia grega e talvez até mesmo de qualquer narrativa, desde o romance, a saga até o conto?

O homem da Idade Média reconhecia quatro elementos na composição do cosmos: água, fogo, terra e ar. Hoje nos contentamos com três: matéria, energia e organização (alguns preferem o conceito de informação em lugar deste último). Isso talvez explique essa atração imperativa que os seres vivos, inclusive o homem, sentem por estruturas organizadas, por vezes levando-as a extremos inexplicáveis. É o caso, por exemplo, do soneto que assolou a poesia de Petrarca a Shakespeare ou do ícone ortodoxo, com as suas inúmeras normas de simetria, cores, figuras etc.

A transição da música do barroco para a do classicismo pode ser entendida como uma troca de formas organizacionais estáticas, tais como simetrias, repetições, seqüências, por outras evolutivas, à semelhança de narrativas. Até o fim deste portentoso período -o barroco- a música instrumental se baseava em simetrias, em repetições, em colorido, em contrastes temáticos e sonoros, e o interesse era no que estava acontecendo a cada momento. A forma-sonata introduz uma nova dimensão – o tempo –, e o interesse é remetido ao futuro, ao que está para acontecer.
É claro que essa é uma simplificação. A coisa em realidade é bem mais complicada. Voltemos ao nosso faroeste. Com freqüência, além do conflito, ou melhor, do tema principal, é introduzido um segundo, que contribui para o drama. Tomemos por exemplo o magistral “Os Brutos Também Amam” [“Shane“, 1953] de George Stevens; o afeto que se desenvolve entre o pistoleiro e o menino e seus pais serve para aguçar a polarização entre o bem e o mal. Antigamente se falava em tema masculino, o principal, obviamente, e o feminino, o secundário. Hoje em dia essas denominações são consideradas politicamente incorretas.

Embora do ponto de vista estrutural seja a forma-sonata dividida em três segmentos (exposição, desenvolvimento e recapitulação), do ponto de vista tonal ela o é em apenas dois. Durante a exposição é apresentado inicialmente o “primeiro grupo” na tônica, ”ou seja, com acento na nota principal da clave escolhida”. Em seguida é exposto o “segundo grupo”, que é expresso na “nota dominante”, a “nota mais aguda” da mesma clave. Para o leitor não-músico essa explicação é grego. Mas serve para mostrar a rigidez da forma-sonata. O primeiro grupo inclui o tema principal e o segundo, o tema secundário. Ambos os grupos podem incluir outros temas. Durante o desenvolvimento os temas escolhidos são com freqüência modulados em outras claves. E, então, na “recapitulação” retorna-se com os temas principal e secundário na tônica, o que provoca a sensação de relaxamento, às vezes de êxtase, tanto quanto quando o mocinho derruba com três tiros os cinco bandidos e beija a mocinha.

É claro que, para manter a atenção do ouvinte, pequenos episódios de nega-e-promete são inseridos. Beethoven, e não Hitchcock foi o grande mestre dessa forma de suspense. Ele prolonga o sofrimento dos seus infelizes ouvintes até o limite do sadismo para então entregar o objeto do desejo, o tema utilizado, em sua forma pura, original.

Quem não sentiu essa ansiedade crescente e o alívio subseqüente, não ouviu Beethoven.
Pois bem, isso não existia no barroco, onde predomina uma estética puramente espacial, estática, como na pintura, na arquitetura, na escultura, enquanto no classicismo, com a introdução do tempo, a sensação se torna eminentemente emocional. Eis porque os matemáticos preferem Bach a Mozart.

Mas qual seria a lógica dessa perversamente intrincada fórmula do classicismo? Por que é necessária essa complexa e rígida estrutura de claves, de segmentos, de jogo entre tônica e dominante? Seria isso inerente ao sistema tonal maior-menor? Nenhum dos especialistas na música do classicismo, nem Tovey nem Rosens, consegue explicar.

Só podemos concluir que é uma fórmula empírica, desenvolvida, portanto por uma sucessão de experiências que constituíram um método de “tentativa e erro”, que somente a genialidade, a intuição e a infinita paciência de Haydn puderam arquitetar (com alguma ajuda de Mozart, de Karl Philipe Emanuel Bach e de alguns poucos outros).

Foram 104 sinfonias, 70 quartetos, cerca de 170 trios (para “baryton” ou para piano), 50 sonatas para cravo ou piano, inúmeros concertos, onde era experimentada, a cada obra, a cada movimento, uma nova idéia. E assim foi criada a forma-sonata.

 

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Classical Music 101: Horror and Suspense

http://youtu.be/Qj32VRPaBb4

 

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Shane (1953) Soundtrack (OST) – 01. Title

http://youtu.be/3kA6lCVwKnU

 

Créditos de imagens: classicosnaoantigos.blogspot.com


*Publicado no jornal Folha de São Paulo de 19 de março de 2006

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