Em Destaques, Literatura

Prezado Prof. Rogério,
Muito obrigada pelo seu livro e pelo privilégio de estar no grupo seleto daqueles das primeiras leituras e comentários críticos. Senti-me muito honrada pela sua lembrança e consideração.
Revivi muitas emoções ao saber que fazemos parte do mesmo grupo dos aprendizes de Quixote, na vida acadêmica. Mas, suas particularidades existenciais – tenho enormes dificuldades de aceitar a orfandade e a solidão das crianças – emocionaram-me muito. Surpreendeu-me esse seu livro, pois o conheço há tempos, através de seus textos políticos, científicos e críticos, que são duros, rigorosos, muito diferentes aquele do livro mais carregado de emoção, de subjetividades e confidências, do que a enorme racionalidade que a ciência requer a cada dia de cada um de nós… Mas é um texto com muito humor! Em muitas das partes, diverti-me e muito! Sua revelação sobre o apelido do Brigadeiro Eduardo Gomes, é hilária!
Mas, não consegui ler seu livro! Devorei-o na primeira leitura, como sempre faço quando tenho uma das minhas preferencias em mãos – as biografias! Só na segunda leitura, sem ansiedade e curiosidade que esse tipo de livro me traz é que consegui lê-lo, para fazer a “lição de casa”, que generosamente me solicitou que fizesse… os comentários críticos.
A qualidade cristalina do seu texto (sou sua fiel leitora na Folha, e em seu Blog que visito sistematicamente) que é sempre prazeroso de ser lido. Mas este de Um Aprendiz de Quixote supera a todos, pelas revelações que faz, pela emoção que colocou nele ao revelar ao seu leitor aspectos importantes e interessantes da sua vida pessoal, que poucos ou quase ninguém conhecia até aqui! Quando vemos um grande personagem, imaginamos que ele não tenha uma vida comum, que faça traquinagens, que namore duas moças ao mesmo tempo… e que lute box!!!! Mas, estou aqui ainda pensando sobre sua teoria da beleza das mulheres… sobretudo, as “medianamente bonitas”…
Fiquei feliz ao constatar que estive nessa sua mesma estrada acadêmica e científica, apenas uns três ou quatro anos atrás, vivenciando muitos dos episódios narrados no livro, sobre algumas das instituições e personalidades… Em alguns deles, confesso, senti-me ao seu lado, embora sem a sua notoriedade, mas lutando na mesma trincheira!
A busca de condições para estudar, a liderança nata para tomar iniciativas e agrupar pessoas, que estão reveladas no livro são entusiasmantes! Sei perfeitamente o que significa organizar eventos, em uma semana para autoridades importantes… Somente os loucos (desculpe-me, mas é no melhor sentido dessa palavra que a utilizo aqui) são capazes de fazê-lo!!!
Enfrentamentos no campo das ideias, assumir posições e funções de máxima responsabilidade com o único e exclusivo sentido de ajudar ao país, por mais que a maioria das pessoas não acredite que isso seja possível… A não adesão do malfadado “pacto da mediocridade” constituído por “professores ocos” que causam um enorme prejuízo não apenas a produção do conhecimento, mas eticamente, a gerações de brasileiros é algo que precisa de muita coragem.
Nas ciências humanas isso tem sido uma calamidade, posso assegurar-lhe! Uma total incapacidade para compreender as dinâmicas do mundo, logo um atraso no método de trabalho, com sérias implicações no processo de conhecimento da realidade! É assustador! Por isso, sua coragem revelada nas batalhas que travou é um aspecto a ser destacado neste livro e uma pedagogia a ser difundida dentro das universidades! Como, estes tempos estão carentes, dentro das universidades, de indivíduos éticos, corajosos e que dominam os cânones e rituais da vida acadêmica, milenar!!! Hoje, os professores abdicaram de o maior poder que temos que é o conhecimento – e nas ciências humanas, obrigatoriamente, multidisciplinar – em favor de burocracias burras, naturalização e “matematização” do mundo, onde projetos de pesquisa magistrais são número de paginas exigidos pelos editais. Poder, conhecimento e rigor são traços sociais e critérios pessoais que caminham juntos! Em seu livro, todo o seu percurso trazido à baila está repleto dessas características!!! Não é sem razão que se estenderam as pré-avaliações de projetos, que deveriam permanecer no domínio da documentação pessoal de um candidato a um edital de uma agencia financiadora de pesquisa ou um programa de pós-graduação, a funcionários técnicos administrativos e não a importância de um dado projeto para o conhecimento ou para o país!!! Isso também está claro no seu percurso… projetos importantes abandonados, que vão e voltam às pautas… Quantas foram as suas lutas, relatadas com clareza nesse livro! Por isso, além das “quedas de braço” na politica acadêmica, que vai desde a criação de centros e laboratórios de pesquisa, à eleição de reitores… Como entendi sua narrativa, caro e ilustre colega!!!
Por isso tudo, seu Aprendiz de Quixote é também um livro que interessa a historia da ciência, do conhecimento e do pensamento critico brasileiro.
Mas gostaria de registrar meus encantamentos aos momentos de relatos de experiência vividas com seus amigos e meus, além de alguns de meus mestres comuns, pois estávamos quase juntos em alguns lugares!!!
Na França, por exemplo, onde também fiz meu doutorado, na Sorbonne, no Instituto de Geografia da Rue Saint Jacques, ao lado do metro Luxemburgo! Iniciado em 1963 – o seu foi em 1959! Aquela Paris que se reconstituía da guerra, os migrantes que chegavam para o trabalho de reconstrução dos serviços básicos da cidade, a dureza da guerra da Argélia que ecoava ainda pelos Boulevards… Quanta saudade seu livro me provocou… Mas a descoberta da abundância cultural oferecida pela cidade, concertos, teatros… canto gregoriano nas igrejas, gratuitamente… Notre Dame às 5 da tarde aos sábados e domingos e Saint Eustache, no Halles… o melhor e maior dos órgãos… E, os concertos de música clássica, Bach especialmente, na Igreja de Saint Germain de Près, que eu frequentava como “promeneuse”, por um franco!!
E os tempos de residência na Casa do Brasil?
Como esse seu livro me fez ter saudade, Professor!!!
Por isso adoro biografias!!!! Historias de vida em um mundo que é uma totalidade em movimento, a gente sempre encontra um fiapo, que seja, que também nos diz respeito…
Mas essa saudade me levou às lágrimas, realmente, quando cita nossos (desculpe-me pelo atrevimento) amigos: Benevenuto de Santacruz, o Bené, da Livraria Duas Cidades, meu amigo de toda uma vida, pois principiei minhas lidas com o planejamento urbano e regional, na SAGMACS, que ele dirigia! Aziz Ab’Saber, geógrafo como eu, que foi meu jovem professor em 1959 quando cheguei a USP, também vindo do interior como todos nós e, como eu, caipira da baixa mogiana, que sou! A tese de doutorado de Azis, cuja defesa tive o privilegio de assistir sobre a Bacia Sedimentar de São Paulo é importante e útil até hoje…
Há também ligado a tudo isso, o Vale do Silício, que não conheço pessoalmente… mas, que todo planejador regional tem obrigação de conhecer! E lá estive eu quantas vezes, e mesmo agora, com seu Aprendiz, aprendendo sobre ele, nos livros! E, também, sobre tecnopolos! Visitei e estudei os franceses, no Languedoc e na Camargue!!! Geógrafo e planejador urbano e regional, pelo que vejo têm muito a ver com a implantação das localidades, onde brotam também as vanguardas da tecnologia!
Mas é exatamente através desse tema que entra Romulo de Almeida, convidado para o primeiro seminário que Milton Santos e eu organizamos na USP, para elaborar a primeira crítica à concepção do pensamento único, a globalização. E, lá estavam Romulo de Almeida, Severo Gomes, Ignácio Rangel e tantos outros ajudando-nos a tentar uma virada no jogo, iniciando as discussões sobre o que Milton escreverá depois: a possibilidade de constituir uma outra globalização, a partir do que ai está! Mas, somente, a nova racionalidade do mundo que é política, pode dar conta dessas discussões e desse tema…
Mas há outros, que seu livro e minha historia de vida, colocou nessa mesma estrada: Zeferino Vaz, que semanalmente frequentava a Secretaria do Planejamento, que comandava o orçamento do Estado, para acompanhar e lutar pelos recursos necessários a fundação e instituição da UNICAMP. Eu fui naquela época, analista de projeto da Secretaria e a UNICAMP, estava sob minha responsabilidade e de Marisa, cujo sobrenome não consigo recordar, uma excelente pedagoga que também era técnica da Secretaria. Quando o Reitor chegava, conversador como era… interrompíamos nosso trabalho, para ouvir suas histórias… Astuto, Zeferino Vaz! Era respeitado e muito admirado por todos no Palácio do Bandeirantes, onde trabalhávamos.
Como vê meu caro Professor, meu entusiasmo é imenso pela leitura do seu livro, por todas essas razões!
Então, como fazer comentários críticos com a emoção que senti, além da convergência de opinião com muitas das suas criticas!
Lembro-me bem, por exemplo, da luta da qual participei, junto com os colegas do INPE, na época, em razão da colaboração com a China, sobre a plataforma do foguete. Nessa época, eu presidia o Conselho dos CAs – Comitês Assessores do CNPq – o CCCA, com um colega de Minas – Ivan, cujo sobrenome não consigo lembrar…
Tenho sim pequenas divergências com sua interpretação sobre a atuação de alguns poucos personagens mencionados em seu livro e que tiveram papel importante em toda essa historia que ajudou a criar na ciência e tecnologia brasileiras. Mas elas não merecem ser citadas nesta minha reação, pois não significam nada diante da contribuição que este seu livro, através do relato do que foi sua vida e sua prática cientifica empresarial, politica, para esse duro e conturbado processo, ainda inacabado de construção do conhecimento maduro de interesse do nosso país.
Para uma atrevida geógrafa, toda essa discussão, passa por um tema tão esquecido no Brasil e atualmente mais que agredido pelo atual Governo golpista e, do mais alto interesse da minha profissão, que é a soberania nacional e o uso do nosso território. Um escândalo essa questão entre nós!
Mas todo o seu processo de aprendizagem aqui relatado Professor, sua coragem como ser humano, sua bravura e audácia como homem do conhecimento e da ciência e a veracidade dos fatos que relata e da historia que construiu para esse processo tão difícil e complicado, só me dá esperança.
E é disso que estamos precisando no Brasil hoje. Esperança e enorme coragem e capacidade de luta!
Nisso não há sua aprendizagem e luta como Quixote, mas sua vida vivida! Respeitável e notável vida vivida, com todas as derrotas que teve, mas também a força das encrencas que criou.
Alonguei-me tanto, desculpe-me! Mas é o entusiasmo!
Ainda, antes de me despedir, um comentário critico, mas editorial e, um pedido de correção, por falar em corporações: Aziz Ab’Saber é geógrafo, dos melhores. Corrija, por favor, na sua página 177, na sexta linha do primeiro parágrafo, em uma segunda edição.
Pelo menos, uma observação crítica. Lição de casa feita, com enorme prazer.
Continuo, sempre, a ser sua aprendiz.
Obrigada, Professor!
Forte abraço,
Campinas, 18 de janeiro de 2017.
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Maria Adélia Aparecida de Souza. Geógrafa. Pós-doutorado pela Universidade de Paris. Livre Docente da Universidade de São Paulo (USP).

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