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Por Frei Beto

La Boétie publicou, em 1576, o Discurso da servidão voluntária, texto no qual analisa esse estranho fenômeno que faz certas pessoas abdicarem de sua autonomia para pensar pela cabeça alheia e agir segundo o seu mestre mandar.

Ocorre em todos os âmbitos, desde a mulher que se deixa subjugar pelo marido ao funcionário que jamais questiona as ordens do chefe. Aliás, os criminosos nazistas e os torturadores brasileiros que chegaram às barras dos tribunais alegaram, em sua defesa, o cínico argumento de que “cumpríamos ordens”.

Outro dia, perguntei a uma senhora a quem dará seu voto para prefeito. “Naquele que Deus mandar”, respondeu. Espantei-me e, confesso, com uma ponta de inveja. Sempre quis saber a vontade de Deus quanto aos meus passos na vida. Tenho uma fé entremeada de incertezas.

Sei, porém, que Deus é Pai (e também Mãe, lembrou o papa João Paulo I), mas não é paternalista. Como reza o Gil, deu-me régua e compasso e, o caminho, eu mesmo traço. Isso se chama livre arbítrio.

Aquela senhora, entretanto, dava mostras de ter merecido um canal direto com Deus. E mais: um Deus cabo eleitoral na acirrada disputa das eleições municipais.

Como a senhora saberá quem é o candidato preferido de Deus?”, indaguei. Ela retrucou candidamente: “O pastor dirá. Ele é a voz de Deus.”

Meu Deus!, reagi intimamente. Confundir a função de padre, bispo ou papa, com a vontade de Deus, é uma das mais aberrantes artimanhas para favorecer o fundamentalismo e suscitar a servidão voluntária. Vide o que os terroristas islâmicos fazem em nome de Maomé!  

O mais curioso é que nem ateus escaparam disso. Basta ler O homem que amava os cachorros (Boitempo), de Leonardo Padura. Em nome da Causa, encarnada na vontade inquestionável de Stalin, Ramón Mercader sacrificou a sua vida para assassinar Trotski.

Aliás, quase todos os líderes, sejam eles políticos, religiosos ou empresariais, preferem que seus subordinados abdiquem da consciência crítica. E ainda que tenham opinião diferente, tratem de omiti-la. O peixe morre pela boca…

Daí o fenômeno degradante da humilhação voluntária. Para não perder prestígio, manter a função ou se julgar bem visto aos olhos do chefe, muitos abaixam a cabeça e exibem os fundilhos… E qualquer crítica é tida como desvio ideológico, heresia, conspiração ou traição.

Volto à canção de Gil. Na esfera cristã, a régua é a Bíblia e, o compasso, a prática de Jesus. Ele atuou em defesa dos direitos dos pobres e excluídos. Denunciou os opressores e “despediu os ricos com as mãos vazias”. Partilhou os pães e os peixes, e “saciou de bens os famintos”.

Todos que se consideram seus discípulos, e acreditam que Jesus agia segundo a vontade de Deus, deveriam, portanto, agir como ele, inclusive ao votar. Os critérios evangélicos são óbvios para quem tem olhos para ver e orelhas para ouvir.

O resto é demagogia e tentativa de perpetuar a servidão estrutural daqueles que, fora do mercado, não merecem dignidade nem salvação.

Do blog do Autor [http://www.freibetto.org/]: 17/09/2016.

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Frei Betto. Teólogo e Escritor.

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