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Haverá, certamente, interesses comerciais que estimulem e ampliem os lançamentos e ondas de popularidade de obras até então desconhecidas. Dizem que existe uma centena de gravações d’As Quatro Estações de Vivaldi em catálogo. Na crista da onda está o Canon de Pachelbel. E o Adágio de Albinoni apenas começa a sair da moda. Mas há edições que espertamente combinam esses dois hits. Houve época que me irritava bastante esse mercantilismo. Mas hoje reconheço que servem a um propósito elogiável, a difusão da própria música. Acredito que muitos daqueles que adquiriram o Adágio de Albinoni ou As Quatro Estações de Vivaldi vieram a ampliar seu interesse sobre a música italiana do século XVIII e por aí ingressado em uma nova e profícua aventura intelectual.

Mas talvez a maior lição a extrair desse fenômeno seja o inesperado fato de que essas escolhas não são de forma alguma destituídas de sentido. As Estações de Vivaldi representam o pináculo da forma concerto grosso e também da música instrumental de seu autor. Há, certamente, dentre os quatrocentos e tantos Concertos de Vivaldi, outros que mereceriam destaque pela genialidade, mas nada que possa ser considerado nitidamente superior. O gosto popular acertou nesse caso.

O mesmo acontece com as peças favoritas do público de autoria de Albinoni e Pachelbel, o famoso Adágio, já difundido desde a década de 50, e o Canon de Pachelbel, que só veio a retornar verdadeiramente popular, nessa década. São também essas peças que se distinguem pela inventividade rítmica e pela exuberância melódica, no âmbito das obras de seus respectivos autores, indicando uma percepção sutil do gosto popular.

Um favorito do público é o Coral denominado em português Jesus Alegria dos Homens, extraído da Cantata147 de Bach e que já deve ter rendido milhões de dólares nas inúmeras transcrições e adaptações grotescas dentre as quais, a das Casas da Banha não é a pior. Também essa traz um testemunho positivo quanto ao acerto do gosto popular, embora seja difícil, dada a vastidão do gênio de Bach, colocá-la em bem definida posição de destaque. Para os gourmets, informo que há uma transcrição para órgão e trompete que costumava ser tocada nas manhãs de domingo na Notre Dame e foi gravada por Marie-Claire Alain e Maurice André.

É verdade que algumas dessas peças favoritas caem na obscuridade. Um desses casos é o da legendária Ária e Variações de Haendel, denominada O Ferreiro Harmonioso que foi imensamente popular nos anos 40. Injustamente, por certo. Mas que não se apoquentem os melômanos dedicados, pois é bem possível que esteja essa sedutora obra em vias de estrondosa restauração no gosto popular, pois com esse nome, O Ferreiro Harmonioso, acaba de ser lançado um desses discos salada mista que incluem autores diversos de épocas e países distintos e que não há como classificar de maneira prática. Normalmente evito esse tipo de lançamento, mas dessa vez não resisti, pois um dos ingredientes incluídos é a Sonata KK. 380 em Mi Maior de Domenico Scarlatti, que já ensaiou no passado uma incursão retumbante no gosto popular. Até hoje, não entendo bem por que não vingou, apesar do esforço da muito admirada Wanda Landowska. Mas é uma peça com imenso potencial para se tornar uma favorita.

Recomendo, pois, esse disco com o cravista Trevor Pinnock, não somente pela interpretação brilhante como também pela escolha profética de uma plêiade de obras que poderiam ombrear, pelo lampejo de genialidade, com aquelas coroadas pelo gosto popular. Não há uma dentre elas que apropriadamente manipulada por um sistema de promoções competentes não possa alcançar o sucesso do Canon de Pachelbel, ou do Adágio de Albinoni.

Mas que não se deduza daí que existam muitas obras com essas características. Creio mesmo que são bem poucas, pois o gosto popular é muito mais exigente do que o do melômano ou mesmo do crítico de música.

No disco de Pinnock, que tem como subtítulo Peças Favoritas de Cravo, estão incluídas além d’O Ferreiro Harmonioso e da Sonata KK. 380 de Domenico Scarlatti e sua companheira a KK. 381, outras obras igualmente sedutoras. Dentre elas merecem menção o viril Concerto Italiano de Bach, a devastadora Passacaglia em Ré Menor de Fischer e a eloquente As Barricadas Misteriosas de François Couperin.

Domenico Scarlatti

Sonata in D major, K492

Trevor Pinnock

play

https://www.youtube.com/watch?v=9_mPdDa_jOs

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Texto publicado originalmente em 31/05/1987


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