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A tragédia ocorreu em Londres, no dia 8 de outubro de 1953. A guerra havia interrompido a carreira gloriosa e apenas em 47, na primeira vez que participou do Festival de Edimburgo, obteve Kathleen Ferrier o merecido reconhecimento. Fez então algumas gravações, principalmente aquelas com Bruno Walter, seu mentor tardio. Foram poucos e breves anos, mas que brilho maravilhoso! Naquela tarde, outubro de 1953, todos nós lastimamos. Mas, como? E o Schubert que o nosso otimismo nos prometera? E o Brahms, e os Oratórios de Haendel cuja amostra inicial era assim formidável? E a imensa obra de Bach? E as Canções de Mahler? Haveria alguém capaz de substituí-la em Mahler? Talvez fosse por isso que Walter se dedicou tanto a ela.

E todos nós aqui no Brasil esperávamos atentamente cada novo disco seu, mas gravou tão pouco, enfim. De Schubert gravou apenas dez ou doze canções. De Brahms, além das Quatro Canções Sérias, outras quatro e a Rapsódia para contralto. Mas é em Schumann e Mahler que é incomparável. Sua Vida e Amores de uma Mulher jamais será igualada. É impossível manter a serenidade quando ela canta Du Ring na meinem Finger ou o An meinem Herzwen, na meiner Brust.

Mas de Schumann gravou pouco mais, apenas duas outras canções. Com Mahler foi mais generosa. Além dos Kindertotenlieder e Das Lied von der Erde e de três Canções de Rückert, sempre dirigida por Bruno Walter, gravou ainda a Segunda Sinfonia com Klemperer. E ainda pelo menos dois discos com árias de Bach, Haendel e Purcell. E além disso existe aquela insuperável gravação do Stabat Mater de Pergolesi, cuja canhestra tradução para o inglês só poderia mesmo ser contrabalançada pela voz de Ferrier. Ela também gravou algumas Canções de Wolf e Mendelssohn e outras de origem folclórica. Mas tudo que fez caberia em dez discos ou pouco mais. É pouco, e somos obrigados a usar nossa fantasia para imaginar o que teria acontecido se tivesse Kathleen Ferrier sobrevivido mais alguns anos.

A comunhão entre Bruno Walter e Kathleen Ferrier  [12082015]

Bruno Walter

Bruno Walter, Mahler e Ferrier: uma comunhão milagrosa que nem toda a sabedoria da humanidade poderá explicar. Não está apenas na expressividade do maravilhoso timbre de Ferrier, ou na transcendental musicalidade de Bruno Walter, ou mesmo na genialidade sublime de Mahler. Juntos, os três talentos se integram liturgicamente em um único. Em um sutil e inexplicável todo. Ferrier reconheceu de certa maneira essa fusão artística com Bruno Walter, e esse, discípulo e amigo de Mahler, em atos e palavras mostrou essa sua identificação espiritual e artística com a cantora. E se Mahler a tivesse conhecido, teria por certo percebido a amálgama mágica entre os três, o compositor, a intérprete e o maestro pianista.

Um primeiro CD de Lieder com Ferrier acaba de ser lançado. E é Bruno Walter o parceiro ao piano. Contém a inigualável versão do Frauenliebe und Leben (Vida e Amores de uma Mulher), obra máxima de Schumann, absolutamente obrigatória, para amantes do Lied, amantes da música, amantes da arte, da vida, do amor. E para não amantes também. Contém três Canções de Brahms e seis de Schubert, metade de tudo que gravou de Schubert. A transferência para CD não remove alguns defeitos técnicos na gravação realizada em concerto em 1949. Mas a expressão é tão magnificamente arrebatadora que remove qualquer possível restrição. Esperemos que não fiquem os editores apenas nesse primeiro disco. Já é tão pouco o que gravou Ferrier que merecemos pelo menos tudo.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 30/10/1988

Das Lied von der Erde : Der Einsame im Herbst

playGustav Mahler / Kathleen Ferrier
http://bit.ly/1PpdY6Y

Imagem: 1- Kathleen Ferrier PR; 2- Scanned from ”The Illustrated London News” 19 February 1910, p. 275.

 

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