Em Destaques, Música

Se Bach é um incomensurável talento e Beethoven um gênio gigantesco, Mozart é simplesmente um milagre. Todo conhecimento de que dispõe a ciência moderna não é capaz de explicar o fenômeno biológico de sua infinita criatividade.

Creio que comecei a tomar consciência do mistério que representa a existência de Mozart quando, ainda estudante, ouvi pela primeira vez uma coletânea de suas obras para piano a quatro mãos, adquirido em um modesto sebo de discos do Quartier Latin.

Mozart é antes de tudo o grande poliglota da música. Para cada instrumento ele encontra a linguagem natural. Para cada conjunto, a exata medida. Não há nada mais extravagante do que dois artistas, sentados lado a lado, em um piano ou um diálogo entre dois pianos. Em primeiro lugar, porque são tão amplas e diversificadas as potencialidades do piano, que praticamente não há nada, do ponto de vista formal, que justifique a participação de um segundo pianista.

Quando um instrumento é adicionado a um conjunto preestabelecido é geralmente porque o acervo sonoro é insuficiente para ampliar o volume ou a coloração disponível, ou eventualemtne, para reduzir uma limitação qualquer de meios físicos. Dificilmente seria possível justificar a duplicação do instrumento por esse lado.

Descarto, obviamente, a explicação corrente de que Mozart satisfaria com essas composições uma demanda corrente de música para a família burguesa, inclusive a sua própria, em que mãe e filha, dispondo de um único piano não tinham outra opção musical. Não creio que essa possível realidade mundana se constituísse em motivação suficiente.

Não discuto aqui as inúmeras evidências históricas de que tenham essas composições sido ofertadas a amigos ou famílias por Mozart. Mas acredito que essas oportunidades não passam de boas desculpas para Mozart experimentar uma nova linguagem. Creio mesmo que o próprio paradoxo formal exacerbara a imaginação do compositor. Seria imperdoável ignorância admitir que Mozart responderia assim passivamente a uma demanda tão pouco qualificada.

Não quero dizer que Mozart não valorizasse a música para ocasiões domésticas, mas apenas um parvo poderia deduzir que obras-primas da qualidade da Sonata KV 497 ou do Adagio e Allegro KV 594 tivessem sido produzidos para os momentos frívolos de dois priminhos que encostam os cotovelos eroticamente ao bolinarem o teclado do piano compartilhado. E, no entanto, é o tipo de asneira que se lê por aí, em comentários de capas de disco.

Se não era em busca de uma ampliação de meios físicos que estava Mozart, então só poderia ser uma diversificação de meios expressivos ou de percepção. Talvez até uma certa ambiguidade fosse bem-vinda. Se não me falha a memória, aquela maravilhosa descoberta de meus dias em Paris tinha Clara Haskil e Ingrid Haebler como intérpretes. Incontestáveis mozartianas e dois espíritos femininos bastante diversos. Haskil, dedicação e lucidez. Haebler, afeto e intuição. Talvez fosse essa a razão do sucesso.

Aquela gravação já não é encontrável, mas há uma outra de igual categoria. Badura-Skoda e Jörg Demus, que foram introduzidos ao grande público como uma exuberante dupla-pianista há trinta anos atrás e se reencontram com frequência em suas vidas profissionais, voltando agora a tocar juntos. E o resultado é a magnífica coletânea das obras, para dois pianos e para piano a quatro mãos em quatro discos. Aquela ambiguidade essencial a esse gênero cultivada espontaneamente é a essência dessa versão. Demus intenso e preciso. Badura-Skoda, poético e puro. É um diálogo em que os dois interlocutores usam os mesmos vocábulos, as mesmas sentenças e, no entanto, dizem, um ao outro, coisas tão adversas, pela entonação, pela acentuação apenas.

Haebler voltou com Hofmann a gravar a música para piano a quatro mãos, mas o resultado já não é o mesmo. Mais interessante foi a tentativa de Brendel com Klien. Ou ainda a de Reisenberg e Balsam. Eschenbach e Frantz, maravilhosos na música para quatro mãos de Schubert, não conseguem em Mozart reeditar seu sucesso anterior, todavia. Mas de qualquer maneira é uma opção satisfatória, certamente melhor que a precisão cronométrica dos Kontrasky.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica.  São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 20/05/1984.

Franz Schubert
Fantaisie en fa mineur, D.940
Paul Badura-Skoda et Jörg Demus (piano)
play

Clique aqui!


 

Imagem: Bösendorfer Piano

Facebooktwitter