Em Destaques, Música

Quem dentre nós já leu Marlowe? Ou Ben Jonson? Talvez uma peça ou duas? São talentos imensos, mas a decepção é inevitável, pois esperamos sempre reencontrar Shakespeare. E Marlowe e Ben Jonson não são Shakespeare. Eis um grande defeito. Shakespeare se torna uma barreira quase intransponível entre nós e seus precursores. Estamos tão impregnados de sua genialidade e de sua expressão personalíssima, que nossa própria percepção fica prejudicada.

Shakespeare criou uma linguagem, um processo de comunicação próprio e estamos viciados. É preciso encontrar um novo caminho para receber o que nos preparou Jonson e Marlowe. Maldito Shakespeare que nos vicia com sua eficácia e nos cega com sua imensa luz. E assim condiciona nossa sensibilidade, reduzindo nosso universo estético e nos aprisiona em sua própria individualidade. Bendito Shakespeare que organiza nosso intelecto, ávido de estruturas e de regularidades.

Também não perdoamos às Sonatas de Mozart por não serem as Sonatas de Beethoven. Seria possível remover o império que Beethoven exerce sobre nós, efêmeros habitantes do século XX? Seria possível liberar nossas almas escravizadas pelo comando corruptor da expressão beethoveniana? Será necessário expurgar Beethoven para acolher Mozart em toda sua plenitude? Ou bastaria reencontrar nossa própria sensibilidade? Será que tudo que nos enriquece nos limita? A principal tarefa do intérprete é pois a de guiar-nos para esse reencontro. Bruno Walter nos ofereceu sua sabedoria e Beecham sua intuição e hoje as Sinfonias de Beethoven não mais obstruem nosso entendimento com o Mozart das Sinfonias e dos Concertos para piano.

Da mesma forma, o descortino de Gieseking abriu a primeira porta rumo às Sonatas para piano de Mozart. É notável como Schnabel, que se dizia antes um intérprete de Mozart do que um especialista em Beethoven, não tenha contribuído mais decididamente para essa revelação progressiva. Gieseking deu o primeiro passo por causa talvez de sua alma rústica. Era preciso tirar as sonatas das mãos femininas. Simplicidade em lugar de elegância. Objetividade em vez de graça. Era preciso despir Mozart, eliminar adereços, rendas e brocados. Recuperar a essência, fragmentá-lo para reconstituí-lo em sua plenitude. E Gieseking deu o primeiro passo de maneira decisiva. Sua interpretação da música para piano de Mozart é límpida e direta. E seria talvez desconfortável, não fosse o sentido colorístico, o toque incomparável do grande pianista. A edição completa da música para piano de Mozart por Gieseking foi reeditada na década de 70 e ainda é encontrada com relativa facilidade.

Nessa tarefa de purificação da música para piano de Mozart, de maneira decisiva colabora a incansável Lili Kraus, com seus dedos de cromo metálico. E sua integral das Sonatas para piano ainda é encontrável. Lili Kraus é impiedosa, em nenhum momento se deixa levar pelo sentimentalismo ou, por outro lado, pela sedução da elegância mozartiana. É como um banho em riacho de montanha. Seu sangue se vitalizará pelo impacto contundente da água gélida. É como se o Romantismo nunca tivesse existido.

Depois de Gieseking e Lili Kraus estava Mozart pronto para ser reumanizado. Agora já sem os embaraços do dogma beethoveniano e sem os preconceitos de frivolidade e graça que revestiam as concepções musicais do começo desse século. Todavia esse trabalho está apenas se iniciando. Talvez porque a missão de Gieseking e de Lili Kraus tenha sido quase perfeita.

Eschenbach concorreu com juventude e espontaneidade em sua edição integral das Sonatas, que é bastante atraente. Entretanto, estou convencido de que o passo decisivo será dado por alguém que, como Badura-Skoda, passou sua vida refletindo sobre Mozart. O ciclo completo das Sonatas foi recentemente lançado pela Eurodisc com esse artista, mas ainda não o recebi. Portanto, recomendo por enquanto a versão de Ingrid Haebler, essa sensível pianista vienense que se embriagou de Mozart desde o dia que nasceu. É uma visão generosa, porém sem sentimentalismos. Expressiva, sem encenação. Eloquente, sem dramaticidade. Poética, sem lirismo.

Seria o Mozart sonhado por Gieseking? E não podemos esquecer da leveza e despretensiosa ambiguidade da série de Klien para a Vox. Glen Gould, em sua integral também contribui de maneira decisiva para essa recomposição progressiva de Mozart, embora recaia com frequência em personalismos inúteis. É óbvio que há também interpretações isoladas bastante atraentes, principalmente das Sonatas da fase intermediária, como por exemplo, a KV 310 por Dinu Lipatti, as KV 330 e 331 por Edwin Fischer e a 310 e a 322 com Schnabel e por Kempff, também na 310 e na 331, mas que pouco contribuem para firmar uma nova concepção de interpretação para a música para piano de Mozart. Sob esse aspecto devemos agradecer antes a Gould, que a Schnabel ou Lipatti.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 15/04/1984.

Wolfgang Amadeus Mozart Concerto in D minor, K. 466 Regência Hans Rosabud

Walter Gieseking (Piano) Ano da execução: 1953

play

Clique aqui!

Sonata in B flat K 570

Walter Gieseking (Piano)

 

play

Clique aqui!

Mozart: Complete Solo Piano Works [Box Set]

Walter Gieseking (Piano)

play

Clique aqui!


Imagem: Reprodução

Facebooktwitter