Em Destaques, Vida Nacional

Por Adrián Pablo Fanjul

Hoje leio em O Estado de São Paulo a enésima coluna golpista de Fernando Henrique Cardoso, com o título “Por uma agenda nacional”.

Desta vez, não apenas indica como deve ser a saída da presidenta eleita, mas desce o programa inteiro para o novo governo que deve assumir no seu lugar.

Vale a pena parar um instante sobre alguns detalhes do seu dispositivo discursivo, diga-se de passagem, nada sofisticado.

Cardoso não começa falando de política, mas da sua própria vida social e cultural. Conta que acaba de voltar de Berlim, onde assistiu à execução de duas sinfonias de Beethoven, na Filarmônica, a cargo de um grande regente, e o quanto isso o confortou.

Dado que a informação não tem qualquer relação temática com o resto do texto, mas inicia a coluna, deve entender-se como apenas a captatio benevolentiae, momento de atrair corações e mentes para o que lhe segue. E como tal, diz muita coisa.

Se for para pensar em viagens ao exterior, a maior parte da base eleitoral de FHC e seu partido provavelmente estejam mais preocupados com não poder ir a Maimi, Cancun ou como muito, Dubai, e não tenham cogitado investir em chegar a Berlim para ouvir um concerto desses.

Por isso mesmo, provavelmente não façam o simples raciocínio de que muitos, mas muitíssimos brasileiros podem baixar por Youtube e escutar, inclusive com boa amplificação, se reunirem uma mínima infraestrutura, a bela sessão que assistiu o ex-presidente.

Menos ainda imaginam que, graças ao trabalho de professores e estudantes e a uma certa diminuição da desigualdade social, a mesma sessão ou outras semelhantes possam já ter sido escutadas em salas da periferia das nossas cidades, e ainda aprofundadas com instrutivas explicações dadas por quem trabalha em projetos de extensão.

Talvez, por que não, em alguma dessas escolas “ociosas” que o partido do colunista viajante está tentando fechar em São Paulo e no Paraná.

Se nada disso passa pelas hipóteses desses leitores, o efeito pavão está conseguido: Fernando Henrique, o culto, assistiu à sessão de gala e teve que voltar a este imerecido chão para nos falar das “agruras” da política. Escutemo-lo, ele sabe.

Na coluna, FHC reitera que a presidenta Rousseff deve ter a “grandeza” de renunciar (é a terceira vez que o diz), e imediatamente propõe “cinco ou seis pontos fundamentais” para sair da crise.

Nada de impostos às grandes fortunas, que no Brasil são ridiculamente baixos. Nem uma palavra sobre os lucros escandalosos dos banqueiros, quem ganha tem que continuar ganhando.

As propostas são aumentar a idade mínima de aposentadoria, reduzir o gasto público e precarizar mais o trabalho assalariado “mesmo a despeito do legislado”.

Esses são os componentes concretos da “agenda”, mais algumas formulações já rituais sobre “credibilidade das instituições políticas”.

E parece que não contente com fazer um plano de governo para o Brasil, Cardoso está fazendo propostas para a Argentina.

Segundo a Folha de São Paulo também de hoje, ele foi opinar sobre o governo argentino atual como “desastroso”, torcer pelo candidato opositor (Macri) e recomendar a ele que “tem que vencer o preconceito de que pertence a uma classe alta, não com palavras, mas com gestos de aproximação com pessoas de todos os tipos”.

Se tivesse, quanto menos, se dado ao trabalho de averiguar algo mais sobre “seu” candidato, FHC não teria produzido esse conselho descabido. Macri foi durante anos presidente do clube Boca Juniors, o mais popular da Argentina, e não precisa, portanto, que logo o tucano ele vá lhe ensinar a parecer “povo”.

Mas o que chama a atenção é um contraste: que para atrair o público argentino Cardoso recomende “modéstia”, mas para obnubilar o leitor do Estadão se valha do pavoneio atrasado de contar que ouviu música erudita na Alemanha.

Isso me lembra um belo estudo de Guillermo O´Donnell [1] que, comparando os modos discursivos de ratificação da distância social na Argentina e no Brasil, observava, na Argentina, gestos de encurtamento dessa distância que, sem deixar de ratificar a diferença existente, atuam como traços de uma formação social historicamente menos desigual.

O´Donnell resumia esses gestos no clisé coloquial “Y a mí qué me importa?” (extensível, segundo o mesmo cientista, como “Y a mí qué m…. me importa?”).

Acontece que a sociedade brasileira também mudou um pouco, e a anacrônica tentativa de esnobar por ter ido a um concerto só funciona com quem não para um minuto a pensar. Por isso, meu convite é a um sonoro e mercosulino  “Então você foi a Berlim? Descobriu Beethoven? Y a mí qué m… me importa?”.

O que pode importar que Cardoso escute Beethoven (em Berlim ou na casa dele) se seus vereadores, em Campinas, votam pelo repúdio a Simone de Beauvoir, que parece que era “do mil e trocentos”?

Dá para associar com algum tipo de mérito ou de hierarquia no campo cultural projetos de lei como o “escola sem partido”, de autoria de deputados do partido de FHC?

A qual refinamento cultural corresponde a aliança com o fundamentalismo religioso em tantos espaços legislativos para restringir direitos elementares?

E é, acaso, de um alto padrão civilizatório ter deputados que se autodenominam “bancada da bala”, que se vangloriam de quantos mataram, e ainda nomear um deles para presidir uma comissão de direitos humanos, como faz o partido de Cardoso em São Paulo?

Não está na hora, por esses e por tantos motivos, de os setores progressistas deixarem de ver nesse senhor um “aristocrata” (com ou sem empatia com o termo) e comecem a ver como um dos coronéis da brutalidade, do retrocesso cultural, educacional e democrático?

Citar música erudita não resolve, nem sequer indo à Filarmônica de Berlim. Recomendaria aos que, diante da “alta cultura” de FHC, pressupõem que deve “saber o que é bom” para o país e o mundo, ler o livro Efeito Beethoven. Complexidade e valor na música de tradição popular, de Diego Fischerman [2].

Talvez desse modo entenderiam que, ao serem postas como artefato retórico, as sinfonias recuam ao lugar de música de uso, não se diferenciando a cena de escuta na Filarmônica da de uma telenovela ou de um reality, gêneros sem dúvida muito mais adequados ao projeto cultural que pode acompanhar a “agenda” do Estadão e de FHC.

[1] O’ DONNELL, G. (1984) “¿Y a mí, que me importa?” Notas sobre sociabilidad y política en Argentina y en Brasil. Kellog Institute. Working paper 9.

[2] Buenos Aires: Paidós, 2013.

Viomundo: 02/11/2015.

Adrián Pablo Fanjul. Doutor em Linguística e Professor da FFLCH/USP.


Imagem: Rodrigo Dionisio/Frame/Folhapress

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